por Rosane Muniz Rocha
Qual seria a relação entre o teatro e Di Cavalcanti, Darcy Penteado, Clóvis Graciano, Lasar Segall, Roberto Burle Marx, Noemia Mourão, Flávio de Carvalho, Heitor dos Prazeres, Oscar Niemeyer? São poucos os que conectam esses pintores, artistas plásticos, desenhistas, arquitetos com as artes cênicas. Assim como são poucos os que sabem que na IV Bienal de São Paulo, em 1957, eles expuseram cenários, figurinos e adereços. Suas criações fizeram parte da primeira exposição internacional de cenografia, figurino, arquitetura e técnica teatral: a Bienal das Artes Plásticas do Teatro.
Para os festejos dos quatrocentos anos da fundação da cidade de São Paulo, em 1954, foi organizado o Balé do IV Centenário. Como uma forma de arte teatral que concentra outras formas de expressão em torno da dança, o evento trouxe criações de relevante importância tanto na parte musical quanto na cenográfica. Os desenhos e croquis de trajes e cenários concebidos por catorze artistas ocuparam uma sala especial entre as exposições brasileiras da primeira mostra mundial com foco nas linguagens artísticas e técnicas cênicas.
Para os iniciados nas áreas das artes classificadas como o desenho da cena e da performance, uma referência mundial é a Quadrienal de Praga (PQ), uma mostra internacional inaugurada em 1967 que, como o próprio nome já diz, acontece a cada quatro anos na capital da atual República Tcheca. A história da ligação da PQ com a Bienal de São Paulo é ainda pouco abordada, a não ser entre o circuito profissional daqueles que acompanham o evento europeu.

Os “limites sibilinos” entre as artes
No início dos anos 1950, Francisco Matarazzo, então presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP), instituição responsável pela Bienal no período, vislumbrava criar espaço para reunir todas as expressões artísticas em um grande evento. Tanto que, já como parte da I Bienal de São Paulo, em 1951, apresentou setores na mostra para além das artes plásticas, como a Exposição Internacional de Arquitetura, o Festival Internacional de Cinema, o Concurso de Composição Musical, o Concurso de Cerâmica e o Concurso de Cartazes, – sempre levando em consideração os profissionais, os jovens artistas e os estudantes.
Nessa I Bienal, o então diretor artístico, responsável também pelo festival de cinema, Lourival Gomes Machado, previu a importância que o evento viria a ter por trazer o cinema para dentro de uma exposição: “estes são os primeiros indícios de que os limites sibilinos entre as artes e, o que seria pior, entre as artes ‘maiores’ e ‘menores’ não dominam a Bienal”.¹
A relação de Matarazzo com artistas das mais variadas linguagens desde sempre foi intensa. Seu envolvimento com artistas plásticos e arquitetos que também criavam cenários e figurinos aparece já na inauguração do evento internacional, que possuía metade do seu corpo de jurados formada por artistas que muito atuavam para as artes dos palcos. Mesmo assim, o teatro só veio a ter uma seção própria oficial em 1957, na IV Bienal de São Paulo. O impulso surgiu quando o artista, cenógrafo e figurinista italiano Aldo Calvo, que atuava no Brasil há dez anos, expressou ao teórico teatral, crítico e professor Sábato Magaldi, que era amigo de Matarazzo, a ideia de que a Bienal poderia ganhar se incluísse em seu programa uma exposição de artes plásticas de teatro. Totalmente de acordo, logo procuraram o presidente do MAM SP, que entendeu a importância do acontecimento e decidiu “adotar” o teatro na mostra desde que não acarretasse novas despesas.²

1ª Bienal das Artes Plásticas do Teatro: Exposição Internacional de Arquitetura, Cenografia, Figurino e Técnica Teatral
Será a primeira vez, no mundo, a tentar-se tal empreendimento […] Trata-se da I Bienal de Artes Plásticas do Teatro […]: cenografia, figurinos, arquitetura e técnica do teatro: eis os pontos básicos da manifestação, que compreenderá, sob o vocábulo “teatro”, todo e qualquer gênero – comédia, ópera e ballet, permitindo a contribuição de todos os profissionais.³
Com menos de um ano de preparo pelo Comitê Executivo, a mostra nasce compreendendo as quatro áreas delineadas no subtítulo do evento e organizadas em quatro seções: exposições internacionais oficiais; salas especiais para designers convidados “hors-concours”; exposição brasileira; e exposição de artistas, técnicos e movimentos amadores brasileiros.
Diferente das artes plásticas, as criações para as cênicas ganham sentido quando se materializam “ao vivo”, durante a cena, como parte da narrativa. Mostras desses elementos trazem até hoje desafios em relação à escolha dos meios e formatos expositivos. Mesmo com pouco tempo de organização, mas com o suporte de uma Comissão Consultiva formada por profissionais de muito conhecimento teatral, o regulamento criado para um primeiro evento do gênero foi bastante ambicioso. Era recomendado o envio de croquis originais, gravuras, quadros e maquetes de cenários e figurinos; desenhos, aparelhos, fotografias e maquetes, incluindo projetos de palcos, desenhos de máquinas teatrais, estudos de acústica, entre outros, para o setor de técnica teatral; e maquetes, desenhos e fotografias de casas de espetáculos, ressaltando-se os teatros e auditórios de 1900 a 1957, teatros universitários e reformas de teatro na área destinada à arquitetura teatral.
No Brasil, os anos 1950 foram de muita transformação no que se refere às técnicas e importância dada aos elementos cênicos das visualidades, espacialidades e sonoridades das cenas teatrais. Isso se deu por uma variedade de razões, como a chegada de imigrantes que buscavam refúgio das guerras em terras europeias, mas também pela força criativa dos brasileiros em busca de suas identidades. Nesse contexto da Bienal do Teatro, a importância de Aldo Calvo vai para além de ele ter sido o portador da ideia: sua experiência foi fundamental para modernizar a mentalidade e as técnicas aplicadas no teatro brasileiro. É possível observar essa atuação profissional desde que começou no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), quando ainda era um espaço para abrigar artistas amadores, até as suas contribuições como chefe da cenografia na Companhia Cinematográfica Vera Cruz e seu trabalho como diretor do departamento técnico do TBC, onde viria a implantar oficinas de cenografia, carpintaria e cenotécnica.
A Bienal do Teatro existiu por sete edições (1957–1973) e foram centenas os artistas teatrais brasileiros e de todos os continentes que se apresentaram em São Paulo. Entre tantas representações, Kalma Murtinho é a única figurinista e cenógrafa que esteve presente em seis delas. Sua experiência começa em cena, como atriz, no Teatro Tablado de Maria Clara Machado, diretora que logo percebeu o seu talento e a estimulou a criar e assinar os figurinos. Dali, seria convidada por Gianni Ratto para criar também para o TBC. Suas criações levavam em consideração a encenação como um todo, adaptando sua narrativa espacial e visual à época do texto, à linguagem do diretor e ao momento social da estreia – com trajes, adereços, caracterizações, maquiagens, penteados, chapéus e, vez ou outra, cenários. Características de uma profissional que já enxergava a sua importância como uma contribuinte participativa ao lado de tantos outros, colaborando para a construção da narrativa da cena, e não só “a serviço” do diretor.

Bienal do Teatro: na vanguarda das práticas curatoriais
Foi em 1977, na 14ª Bienal de São Paulo, que a organização das mostras passou a ser dividida por núcleos temáticos, exigindo que os países seguissem os temas propostos. Da década de 1980 em diante, surgem os curadores como responsáveis por definir temas e questões que orientam a organização dos trabalhos para as edições da Bienal de artes plásticas.
A Bienal do Teatro (BIT) nasceu em 1957, vinte anos antes, não só como a primeira exposição do gênero no mundo, mas como um lugar de debate de ideias e concepções diversas. Surgindo, portanto, como uma exposição muito importante para o gênero teatral, proporcionou um compartilhamento dos processos criativos para além de uma exibição de uma “obra de arte” que “porventura” esteve em cena.
Pretendíamos oferecer uma visão panorâmica das artes plásticas teatrais, desde a antiguidade aos nossos dias. O público poderá, com efeito, acompanhar a evolução da história da arte cênica, através de seus momentos privilegiados, reunindo as imagens trazidas pelos vários países.⁴
Além da apresentação livre de cada país para as seções que deram título ao evento (Cenografia e Figurino; Arquitetura Teatral; e Técnicas Teatrais), os organizadores da BIT propuseram aos países que também colaborassem com mostras temáticas didáticas, com os cenários e figurinos criados desde o início das manifestações dessas artes até 1957; com a arquitetura teatral grega até 1900; e com a história das técnicas teatrais até 1918.
A mostra dos Estados Unidos, país que já contava com cursos acadêmicos de cenografia e figurino, recebeu medalha de ouro pelo interesse cultural que despertou com questões apresentadas pelas suas universidades de teatro: onde estudar? O que aprender? Como pesquisar? Quem são os professores? Onde podem trabalhar os formandos? Perguntas que fazemos até hoje.
Entre tantas representações históricas, destacamos cinco: o grande número de imagens e documentos sobre o Balé Triádico, de Oskar Schlemmer, para a Bauhaus, na exposição da República Federativa Alemã; a trajetória do teatro moderno da Suíça, com vários originais de Adolphe Appia; os cenários de Félix Labisse e os figurinos de Léon Gischia, que renderam duas medalhas à França; obras do Teatro Alla Scala, de Milão, e da Bienal de Veneza, na exposição da Itália; e a delicadeza do Teatro de Bonecos, apresentada pela Grécia.
No Brasil, nessa época, havia um forte movimento ligado ao Teatro Amador, preocupando-se com o ensino e a formação integral, o que acabava por envolver todas as áreas da encenação. Com curadoria de Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri, foi criado um programa de palestras realizado no Teatro de Arena e no Teatro Bela Vista como um evento paralelo à Bienal. O conteúdo navegava por várias áreas do exercício cênico, passando pela história geral do teatro e do brasileiro, em particular; por reflexões sobre o autor, o ator, a peça escrita e a representada, problemas de direção e de tradução, os “ismos” no teatro, a relação entre público, crítica e teatro, o teatro infantil, até chegar nas apresentações sobre a cenografia, por Bassano Vaccarini; a indumentária, por Luciana Petrucelli; e a maquilagem, por Victor Merinow.

Uma história de muita potência, porém de curta duração
Apesar da Bienal das Artes Plásticas do Teatro ter ocupado um espaço particular por sete edições dentro da Bienal de São Paulo, com uma série de trabalhos que interessavam aos especialistas e agradavam o público geral, segundo Sábato Magaldi, o evento foi se esvaziando.⁵ Desde a VIII Bienal, em 1965, a V BIT também sofria os efeitos do golpe militar no ano anterior e da repressão política no país. Com o sucesso dos cenógrafos tchecoslovacos, que recebiam medalhas de ouro em todas as edições (František Tröster, em 1959; Josef Svoboda, em 1961; Jiří Trnka, em 1963; e Ladislav Vychodil, em 1965), houve o desejo de realizar uma exposição internacional cenográfica na Europa a cada quatro anos.
A Quadrienal de Praga nasceu em 1967 vinculada à Bienal de São Paulo por meio de um contrato que acabou proporcionando uma definição mais flexível do que a cooperação que havia sido inicialmente combinada. Essa definição era baseada no revezamento de exposições inteiras, a cada dois anos, lá e cá. Mas a pressão política do governo brasileiro só aumentava e, a partir da 10ª Bienal de São Paulo, em 1969, conhecida como “a Bienal do Boicote”, o evento sofreu esvaziamentos. Era natural que tudo isso viesse a respingar também na Bienal das Artes Plásticas do Teatro, que acabou por ter sua última edição em 1973. Sua irmã de Praga, por outro lado, manteve-se no mapa das artes. Hoje, permanece ativa apenas a exposição teatral em Praga, que sobreviveu ao teste do tempo e acumula influência no campo das artes cênicas.
Anos mais tarde, o teatro, a dança e a música seriam muito presentes como linguagens específicas nas edições da Bienal de São Paulo, em especial nas de 1989 e 1991, quando saiu do Pavilhão e integrou a cidade na forma de um grande festival. Desde então, cada vez mais as fronteiras se tornam porosas nas artes e suas exposições incorporam o intercâmbio de linguagens.
Mas os encontros que acontecem entre artistas, técnicos e os vários outros profissionais quando há um evento específico para as artes do teatro formam experiências únicas e inesquecíveis. Desde a criação da PQ, em 1967, os trabalhos do Brasil sempre são aguardados com muita expectativa. Tendo participado de catorze das quinze mostras, o país foi vitorioso em 1995 e 2011 do prêmio máximo do evento, a Triga de Ouro, além de ter colecionado medalhas e condecorações ao longo dessa trajetória.⁶
Pontes em reconstrução
Em novembro de 2023, o time da Quadrienal de Praga visitou o Brasil e a 35ª Bienal de São Paulo para retomar a parceria com a instituição de onde se originou o evento tcheco que completa sessenta anos em 2027,⁷ ano em que a Bienal das Artes Plásticas do Teatro completaria seu septuagenário aniversário se o contrato estabelecido entre as duas partes estivesse em vigor.
Entre 2012 e 2016, quando a maior parte desta pesquisa foi realizada, a história da Bienal do Teatro estava perdida entre caixas e poeira, exigindo paciência, atenção e sagacidade para montar quebra-cabeças sobre o evento. Muitos dos trabalhos expostos não foram listados em catálogos – e outros apresentados, por diversas razões, ficaram de fora das publicações. Com o esforço de digitalização promovido pelo Arquivo Histórico Wanda Svevo, o acesso aos documentos se tornou mais ágil, facilitando a organização de dados e cedendo mais tempo para as análises e reflexões. Ainda há muito a ser escrito e descoberto sobre esse processo e sua relação com a história das artes no Brasil e suas influências pouco conhecidas pelo mundo.
¹ I Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1951, p. 22. (catálogo de exposição).
² XX Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1989, p. 100. (catálogo de exposição).
³ Francisco Matarazzo in O Estado de S. Paulo, 21 mar. 1956, p. 6.
⁴ Aldo Calvo e Sábato Magaldi in IV Bienal de São Paulo. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1957, p. 415. (catálogo de exposição).
⁵ Sábato Magaldi, “Suplemento Literário” in O Estado de S. Paulo. , 27 set. 1969, p. 5.
⁶ Saiba mais sobre as premiações brasileiras no site da PQBrasil: pqbrasil.org/premiacoes.
⁷ Ver pq.cz/news/pq-team-visits-sao-paulo/. Acesso em jan. 2025.
Sobre a autora
Rosane Muniz Rocha é mestre e doutora em teoria e prática teatral pela ECA-USP e graduada em jornalismo. Autora do livro-reportagem Vestindo os nus: o figurino em cena (2004), escreve e organiza publicações sobre as espacialidades, visualidades e sonoridades da cena. Sua pesquisa de doutorado sobre a representação brasileira na Quadrienal de Praga (PQ) a levou ao Arquivo Histórico Wanda Svevo, onde se encantou com a importância histórica do teatro dentro das edições da Bienal de São Paulo, sendo convidada a palestrar internacionalmente sobre o tema. É coordenadora da subcomissão de figurino da Organização Internacional dos Cenógrafos, Técnicos e Arquitetos Teatrais – OISTAT, e presidente da associação Grafias da Cena Brasil. Atuou no time de curadoria brasileira em exposições para a PQ 2011 e PQ 2015, e foi jurada internacional na PQ 2023.
Este texto faz parte de uma série dedicada ao Arquivo Histórico Wanda Svevo, que completa 70 anos em 2025. Todas as imagens dessa série são ilustradas por fotos guardadas no Arquivo Bienal. Aproveite para conhecer a página do Arquivo e o seu banco de dados, sempre aberto ao público. A iniciativa tem apoio do Promac.