Resplandescente
Bêbada de glória
Para o mundo sou o indecente
Cavaleira apocalíptica, ao meu lado
Só trava eloquente¹
Experimentando com som, pintura, performance, fotografia, moda, mídias digitais e muito mais, as travestis se colocaram na vanguarda das inovações estéticas no Brasil ao longo da última década. A imparável força travesti é sentida não apenas nas artes, mas também em outros campos – tais como a educação, a política ou na própria grande mídia. Vale mencionar, por exemplo, como Linn da Quebrada – uma artista que começou a desafiar das favelas de São Paulo o patriarcado e o machismo com a sua música funk e performances – ganhou fama popular após sua participação no Big Brother Brasil de 2022. Falar de suas obras, assim como das obras de outras artistas travestis, como “belas artes” é para mim uma medida essencial para decolonizar o cânone, que até hoje tem excluído as artes não brancas por conta de sua execução formal ou dos espaços “não convencionais” de fruição.
Criada numa família batista no Nordeste do Brasil, Ventura Profana pensa a sua prática como uma igreja, onde a sua congregação recusa a salvação sob a forma de cisgenderismo ou supremacia branca.² Num país onde a crescente violência contra as pessoas LGBT tem sido alimentada pelo fundamentalismo religioso, a prática de Ventura Profana recupera o lugar espiritual das travestis, pretas, indígenas e outros sujeitos não hegemônicos. Com seu corpo descaradamente voluptuoso, a artista interpreta textos bíblicos e referências visuais religiosas pregando abundância e vida eterna para uma população cuja expectativa média de vida é de 35 anos.³
Ventura Profana e podeserdesligado, EU NÃO VOU MORRER, 2020.
O Brasil é conhecido por ser o país com o maior número de pessoas transgênero assassinadas no mundo – a grande maioria sendo travestis e mulheres trans pretas.⁴ Mas, como bem lembrado pelo Ateliê TRANSmoras quando retomaram as cores da bandeira brasileira na sua passarela de 2019, Brasil, campeão mundial de travestis, travestis também são a força motriz do país em termos de criatividade e transformação social. O próprio Ateliê TRANSmoras, estabelecido por Vicenta Perrotta em 2013 na moradia estudantil da Universidade Estadual de Campinas, é uma plataforma pioneira no uso de uma tecnologia de transformação social liderada por, e para, pessoas trans. Com as suas oficinas de ”transmutação têxtil”, Perrotta e suas colaboradoras têm empoderado criadoras transgênero em todo o país para elaborar roupas deslumbrantes com materiais descartados. Ao transformar o lixo em obras de arte vestíveis, o Ateliê TRANSmoras faz um importante paralelo com a percepção que a sociedade tem das travestis e pessoas trans, reivindicando a noção de rejeição através de processos criativos de autoconhecimento e desconstrução dos padrões coloniais de beleza cis-hetero-branca.

Ateliê TRANSmoras, Brasil, campeão mundial de travestis, 2019. Foto de Tatá Guarino.
O termo “travesti” é frequentemente usado ao lado de “trans”, “transexual” ou “mulher trans” no Brasil. No entanto, na maioria das vezes a comunidade prefere o uso de ”travesti” devido a sua história singular de exclusão social muito relacionada às questões de classe e raça na América Latina, além da recusa perante as expectativas dominantes de ”feminilidade”.⁵ Portanto, o uso de “travesti” no lugar do termo guarda-chuva “queer” (ou mesmo “trans/transgênero”)⁶ serve como gesto anticolonial para reivindicar as lutas de um tipo discreto de dissidência de gênero num contexto do sul global.⁷
Enquanto curadora transfeminista do sul da Europa que trabalha de forma transnacional, venho seguindo a prática de artistas que desafiam as normas sexuais e de gênero há mais de uma década.⁸ Meu lugar de fala é de relativo privilégio, porque o contexto de onde venho e minha aparência nunca me levaram a estar diretamente sujeita à transfobia, ao racismo, à gordofobia ou à pobreza.⁹ No entanto, como pessoa que se autoidentifica como queer e femme,¹⁰ meus afetos e lutas políticas têm sido profundamente entrelaçados com as das comunidades travesti e de mulheres trans, aprendendo incessantemente com suas valiosas práticas e teorizações.
“Somos irrepresentáveis”, ensinou-me Ana Giselle A TRANSÄLIEN quando nos conhecemos pela primeira vez. A TRANSÄLIEN é uma artista, curadora e ativista que também fundou MARSHA!, um coletivo sociocultural trans e travesti. Através de seu trabalho e presença misteriosa – coberta de máscaras, peças para a cabeça e vestidos reluzentes – a artista pretende desmantelar todas as categorias que lhe foram impostas, exercendo assim seu direito à opacidade.¹¹ Uma obra de arte viva e ambulante, sua cosmovisão passa pelo uso da máscara e do mascaramento para acessar estados mais profundos da consciência. Em sua instalação interativa COSMOVERSE (2022), por exemplo, o público é convidado a entrar em um espaço meditativo afrofuturista vestindo mantos multicoloridos cintilantes. Dentro da obra, as pessoas podem descansar e contemplar a videoinstalação e sua trilha sonora.¹²

A TRANSÄLIEN, COSMOVERSE, 2022 (a artista posando na sua instalação). Foto de Silvana Garzaro.
Outro tipo de dimensão contemplativa é materializado no altar de Vulcanica Pokaropa, Para ter visões no fogo (2022): no centro, a pintura de uma mulher negra com um emblema transfeminista é coroada por dois anjos negros vestidos de azul; ao redor, pinturas de santas trans e não bináries ou de criaturas celestes ficam nas paredes e posam com aparência diabólica. Ervas, velas e bonecas travesti com longos cabelos encaracolados completam o trabalho com seus olhos vermelhos, giletes e slogans como “travesti não é bagunça”.¹³ Formada no circo e na performance de rua, Pokaropa expandiu recentemente sua estética pós-punk por vários meios, incluindo pintura, tecido, vídeo e realidade virtual.¹⁴ No seu altar, a artista desfoca as fronteiras entre o bem e o mal, mostrando o martírio e a ascensão de travestis enquanto santas implacáveis que abraçam uma guerrilha contra o patriarcado cis-hetero-branco e aqueles que o representam.

Vulcanica Pokaropa, Para ter visões no fogo, 2022. Foto de Ricardo Miyada.
Bruna Kury também explora a fúria travesti com vídeos e performances que falam e contra-atacam o higienismo social, de raça e gênero. Em Gentrificação dos afetos (2021), a artista caminha no Largo do Arouche, um local de significado histórico para as comunidades LGBT de São Paulo, com salto alto, roupa íntima e com sua cabeça fechada dentro de uma caixa transparente com baratas. Partindo das práticas pós-pornô de ocupação do espaço público,¹⁵ Kury convida os passantes a interagirem dentro do cubo com um par de luvas rosas enquanto o som produzido pelo encontro (e o rastejar dos insetos) é amplificado com microfones de contato. Através dessa metáfora visual e sensorial, criada com a colaboração sonora de Gil Porto Pyrata, a artista levanta sentimentos contrastantes de repulsa e atração que refletem sobre como travestis, mulheres trans e trabalhadoras sexuais são percebidas na sociedade – simultaneamente rejeitadas e desejadas.¹⁶

Bruna Kury, Gentrificação dos afetos, 2021. Foto de André Medeiros Martins.
Além de gênero e sexualidade serem tópicos importantes na produção artística travesti, seria um erro considerá-los como seu único quadro interpretativo. Como descrevi através do trabalho de cinco artistas, a estética travesti é revolucionária porque esmaga categorias e expectativas. É intransigente e indomável – como um vírus “que contamina suas ideias”, como canta Linn da Quebrada.¹⁷ Com este texto, meu objetivo não era representar um movimento que, para usar uma imagem de Jota Mombaça, é feito de pessoas e práticas que são tão múltiplas, erráticas e indefinidas quanto o estilhaçamento de um vidro que explode em milhares de cacos.¹⁸ Contudo, tentei seguir alguns dos saltos espiralares desta corrente em erupção, que é alimentada pelas dores e pelas alegrias da sua força coletiva.¹⁹
¹ Texto de: Ventura Profana, RESPLANDESCENTE – Ventura Profana – poderdesligado, 2019. www.youtube.com/watch?v=vUTLYimT6n8.
² O cisgenderismo é uma ideologia cultural sistêmica que nega e patologiza as identidades de gênero (e suas formas de expressão) que não coincidem com o gênero atribuído ao nascimento. Ver: Erica Lennon, Brian J. Mistler. “Cisgenderism”. TSQ, vol. 1, n. 1-2, 2014. pp. 63-64. doi.org/10.1215/23289252-2399623.
³ Para estatísticas detalhadas, ver: Bruna Benevides. Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 2022, p. 41. antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf.
⁴ Id. Ibid., pp. 30, 50.
⁵ Ver: Dora Silva Santana. “Mais Viva! Reassembling Transness, Blackness, and Feminism”, TSQ, vol. 6, n. 2, pp. 210-222, 2019. www.academia.edu/39506140/Mais_Viva_Reassembling_Transness_Blackness_and_Feminism_DO_RA_SILVA_SA_NTA_NA.
⁶ Tanto “queer” quanto ”trans/transgênero” compartilham uma crítica à normatividade sexual e de gênero. “Queer” tem sido pensado como um termo abrangente que, na teoria, resiste às identificações enquanto indexa comunidades marcadas por gêneros e sexualidades dissidentes. O termo ”trans/transgênero” tem colocado um foco mais explícito na corporalidade, referenciando comunidades de pessoas que cruzam e desnaturalizam categorias de gênero e identidade. Ver: Heather Love. “Queer”. TSQ, vol. 1, n. 1-2, 2014. pp. 172-176. doi.org/10.1215/23289252-2399938
⁷ Por exemplo, estudos recentes ressurgiram a história de Xica Manicongo, africana escravizada que hoje é considerada uma das primeiras travestis do Brasil; ela foi perseguida no século 16 por usar roupas de mulher. Ver: Jaqueline Gomes de Jesus. “Xica Manicongo: A transgeneridade toma a palavra”, Revista Docência e Cibercultura, vol. 3, n.1, 2019. pp. 250-260. doi.org/10.12957/redoc.2019.41817.
⁸ O transfeminismo surge como crítica ao feminismo transexclusivo para reconhecer “a interseção entre as variadas identidades e identificações dos sujeitos e o caráter de opressão sobre corpos que não estejam conforme os ideais racistas e sexistas da sociedade, de modo que busca empoderar os corpos das pessoas como eles são (incluindo as trans)”. Em: Jaqueline Gomes de Jesus, e Hailey Alves. “Feminismo transgênero e movimentos de mulheres transexuais”. Revista Cronos, vol. 11, n. 2, 2012. periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/2150.
⁹ O ”lugar de fala” é um conceito cunhado no Brasil que a autora negra feminista Djamila Ribeiro descreveu como a possibilidade de existir e produzir conhecimento a partir do ”locus social” que uma pessoa ocupa, e não a partir da sua experiência individual. Djamila Ribeiro, Lugar de fala. Jandaíra: São Paulo, 2021, pp. 64-67.
¹⁰ O termo ”femme” vem do jargão anglo-americano pré-Stonewall, que emparelhava as lésbicas femininas (“femme”) com as mais masculinas (“butch”). Hoje, o termo não está ligado a este binário, e as “femmes” não se identificam necessariamente como lésbicas, ou como mulheres. As femmes poderiam ser descritas como pessoas que desafiam a feminilidade, o olhar masculino e as expectativas ligadas à figura tradicional da mulher enquanto observam uma expressão estética ”feminina”. Ver: Ulrika Dahl. ”Femme on Femme: Reflections on Collaborative Methods and Queer Femme-inist Ethnography”. In: Catherine J. Nash and Kath Browne, Queer Methods and Methodologies, 2010, pp. 143-166. www.taylorfrancis.com/chapters/oa-edit/10.4324/9781315603223-10/femme-femme-ulrika-dahl
¹¹ A “opacidade” reconhece a diferença ao aceitar sua ininteligibilidade. É definida por Édouard Glissant como o oposto da “transparência”, que é a base do pensamento ocidental para entender pessoas e ideias. Ver: Édouard Glissant, Poetics of Relation, The University of Michigan Press: Ann Arbor, 1997 [1990], pp. 189-190.
¹² A instalação foi comissionada pelo Itaú Cultural para a exposição Um século de agora (novembro 2022 – abril 2023, Instituto Itaú Cultural, São Paulo).
¹³ A instalação foi escolhida como parte do 8º Prêmio Artes Tomie Ohtake – Edição Mulheres (novembro 2022 – fevereiro 2023, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo).
¹⁴ Seu trabalho colaborativo de VR pode ser acessado em: Spcine, Experiências Imersivas no Território da Realidade Virtual – Cólera, com Vulcanica Pokaropa. www.youtube.com/watch?v=PL1D4Rc11D8.
¹⁵ O pós-pornô visa “desconstruir (ou ao menos confrontar) o imaginário pornográfico e sexual vigente, a partir da representação de corpos, gêneros e práticas sexuais historicamente marginalizadas, juntamente com a recusa dos discursos, estéticas e narrativas tradicionais da pornografia comercial, heterossexualmente orientada”. Érica Sarmet, “Pós-pornô, dissidência sexual e a situación cuir latino-americana: pontos de partida para o debate”, Revista Periódicus, vol. 1, n.1, pp. 258-276. doi.org/10.9771/peri.v1i1.10175.
¹⁶ Segundo o relatório de PornHub 2022, o Brasil é o país que mais consome pornografia “transgênero” no mundo. Ver: PornHub Insights, “The 2022 Year in Review”, 8 de dezembro de 2022.
¹⁷ Linn da Quebrada, “quem soul eu”. Em: Trava Línguas, 2021. linndaquebrada.bandcamp.com/album/trava-l-nguas.
¹⁸ Jota Mombaça. “Na quebra. Juntas”. In: Jota Mombaça, Não vão nos matar agora. Cobogó: Rio de Janeiro, 2021, p. 24.
¹⁹ Agradeço Ventura Profana, Vicenta Perrotta, Ana Giselle A TRANSÄLIEN, Vulcanica Pokaropa e Bruna Kury, que dedicaram seu tempo para compartilhar comigo suas práticas artísticas durante minha residência na Fundação Bienal de São Paulo (novembro de 2022 – janeiro de 2023). Um agradecimento especial para Ana Giselle por ter lido meu rascunho final.
Sobre a autora
A prática de Giulia Casalini abrange curadoria, performance, escrita e pesquisa. Seu ativismo (eco)transfeminista e queer tem o objetivo de construir e unir comunidades pelo mundo através das artes e (natur)culturas. Giulia foi cofundadora da organização sem fins lucrativos Arts Feminism Queer (conhecida como CUNTemporary, 2012-2020), sediada em Londres. Ela agora faz parte do conselho consultivo da galeria Mimosa House e é doutoranda financiada por Technē na Universidade de Roehampton, onde pesquisa performance queer-feminista com perspectivas transnacionais e anticoloniais.
IG/TW: @queer___femme
Web: https://linktr.ee/queer_femme