por Naymare Azevedo
Afrotonizar surge da inquietação de articular o discurso à prática, sendo então um ato de sintonizar, multiplicar, somar experiências de pessoas racializadas em seus diferentes contextos de realidades culturais e sociais, em busca de desencadear processos de identificações individuais e coletivas. É uma energia/gesto de cura, que surge de um processo individual que não seria possível sem o coletivo, sem a troca com os meus semelhantes ou sem os espelhos que fizeram com que eu me enxergasse negra. Surge na tentativa de reintegração de posse do meu corpo e todos os outros corpos não brancos. Surge do esforço de juntar os cacos espalhados sobre mim, sobre os meus semelhantes. Desde quando comecei a conceber a plataforma Afrotonizar, desejei que fosse um projeto de multiplicação, de conexão e de formação de redes de criativos e pessoas racializadas que, através da tecnologia do encontro, queriam viver e trocar experiências para além das violências em comum. Queria construir um espaço onde pessoas racializadas pudessem se sentir livres para fazer arte e celebrar suas culturas.
O ato de afrotonizar só é possível pelos rastros que a ancestralidade deixou, dos passos que vêm de longe e dos que ainda nos faltam percorrer. Por meio dessa ação-conceito, percorro as afrografias¹ da minha memória para me reconectar com as capacidades de existências orgânicas. Pensar em uma sociedade sem as molduras coloniais, possibilita imaginar um mundo onde todas as pessoas possam viver com dignidade sem a mediação da violência colonial. Que possam ser livres, livres das conjunturas das violências do mundo ordenado e de sua concepção de sociedade moderna onde a sequencialidade² promove as interações dos corpos e a separabilidade organiza as relações culturais e econômicas entre as pessoas.

Nesse momento, entre a fuga e a captura, é possível nos imaginarmos de outras formas que não as impostas pela determinabilidade e nos autorreferenciar para além das violências coloniais. Se neste espaço-tempo a prática que nos resta é a da criação, devemos ser estratégicos na hora de decidir qual a liberdade que queremos para nossas práticas de vivência em comum, quais são os caminhos coletivos a serem traçados para que o livramento de fato aconteça? Como nos lembra Denise Ferreira da Silva, a dívida é impagável e a cobrança dela talvez seja apenas uma forma de nos cansar e nos distrair daquilo que é mais importante: estarmos entre nós.
E se pudéssemos criar um mundo onde usássemos nossa energia criativa apenas para viver livremente? E como seria esse mundo onde só pudéssemos viver para além da determinabilidade? Será que, apesar das diferenças, poderíamos viver em co-criação? Em um mundo de tantas possibilidades, quando um sujeito racializado escolhe viver e não apenas sobreviver apesar do trauma colonial, ele determina que talvez não seja a lógica de Chronos que rege sua vida, mas provavelmente a de Iroko, orixá que rege a sua própria experiência com o tempo e suas curvas. E que a vida, que por si só já é determinada, negativa, possa ser infinita.
A plataforma Afrotonizar é um convite àqueles que se sentem dispostos a se comprometerem com a liberdade radical imaginativa. Desde o seu surgimento, entendemos a importância da construção de espaços seguros para pessoas racializadas existirem e criarem, espaços livres para que o trauma e as feridas coloniais encontrem tempo e acolhimento. Desde a nossa fundação em 2017, trabalhamos com empenho para tecer essas redes, com um foco especial em jovens criadores que manifestam a diversidade, o legado e a riqueza cultural de suas comunidades e territórios.
Nosso objetivo principal é promover a libertação da capacidade criativa e imaginativa de pessoas racializadas, formando e promovendo estratégias de livramento para a construção de novas imagens de mundos (im)possíveis. Por isso, investimos na criação de ambientes que estimulem a imaginação radical e o exercício de narrativas e práticas artísticas inovadoras. Acreditamos que sonhos e intuições podem ser vistos como dispositivos tecnológicos, ferramentas que podem transformar realidades e promover a justiça social.
Denomino como práticas de livramento na área das artes todas as que agem segundo as orientações do encontro, da criação, que desfazem ou quebram a lógica da separabilidade e da determinação das filosofias ocidentais. Pois, quando penso em estratégia de livramento, penso em mandinga, feitiço, quebranto, patuá, reza, oração ou quaisquer outras evocações do cuidado e da proteção. Precisamos subverter a lógica de que nossa criação é produto do mundo ordenado, distorcendo a perspectiva que nos faz acreditar na linearidade progressista e democrática do ser enlatado. No mundo onde a autonomia se faz real, a diferença se torna elo de conexão e não de separabilidade, sequencialidade e determinabilidade. Por isso, propor o ato de afrotonizar como estratégia de livramento é percorrer pelos desígnios ancestrais. Pois acredito na mudança como estratégia de transformação daquilo que desejamos destruir e construir enquanto liberdades. Afrotonizar é a criação de conexões que nos permitem o encontro com o que nos movimenta em direção à autonomia. É recuperar as forças dos nossos sonhos e adquirir poderes que nos permitam encarar a vida em mutação de imaginários que transbordam os moldes ocidentais.
Ao impulsionar a criatividade e apoiar essas vozes, buscamos não apenas oferecer um espaço, mas também viabilizar o acesso de pessoas racializadas aos espaços de formação artística. Acreditamos que essas práticas contribuem para uma sociedade mais justa e inclusiva, embora a dívida seja impagável, reconhecemos que, para muitas dessas comunidades, seja ela negra ou indígena, o ato de criar é também um ato de resistência e afirmação das memórias e da vida desses grupos e suas culturas. Por isso, enquanto plataforma de articulação e difusão de possibilidades e acessos, estamos comprometidas em desenvolver abordagens metodológicas que incentivem a conexão imaginativa e a formação de redes, promovendo trocas de experiências através da tecnologia do encontro, que vão além das fronteiras tradicionais do fazer artístico imposto. Nosso giro é contracolonial, nos movimentamos para além das molduras do mundo como conhecemos.
Para o pensador e mestre quilombola Antônio “Nêgo” Bispo, o contracolonial funciona como antídoto colonial, se negando a afirmar ou aceitar o processo imposto pela violência do projeto de hegemonia eurocêntrica e se posicionando como um sujeito com agência e poder de decisão sobre sua vida. Dessa forma, o conceito sugere que a contracolonização é o movimento de construção que permite ao sujeito racializado ter autonomia, liberdade subjetiva e poder de decisão sobre sua vida e de seu coletivo.
Pensando nisso, em 2021 realizamos a primeira edição do Afrotonizar.Lab, em um cenário totalmente improvável causado pelos tempos pandêmicos vividos, o coletivo se mostrou presente e com desejo de partilha. A ideia do projeto é promover a formação de redes e experiências de partilha entre artistas, curadores e pesquisadores. Durante um período estabelecido pelo programa pedagógico, os participantes interessados se inscrevem e são selecionados para participarem de atividades imersivas que perpassam a prática e a teoria e contribuem para o desenvolvimento artístico e criativo, pessoal e coletivo. Além do encontro com outros artistas e profissionais do setor, a proposta do projeto é criar possibilidades de inserção no circuito das artes visuais contemporâneas, entendendo a importância de se criar processos de diálogo com as instituições fomentadoras de arte no país. Na primeira edição online, recebemos mais de 450 inscrições de artistas negros e indígenas do Brasil todo e, no processo seletivo, fizemos um recorte de 50 artistas territorializados entre o norte e o nordeste do país. Mesmo em um formato online e entre telas, os momentos de troca de experiências fizeram com que o processo dos participantes fosse importante o suficiente para que reverberassem em suas práticas de criação.
Waleff Dias, Vai e vem, 2021. Roteiro e edição: Waleff Dias; câmera: Irlan Paixão; produção: Aritiene Sonandra; trilha sonora: Jerônimo Sodré, 2:25 min
Durante o processo de criação no laboratório, muitos puderam experimentar diferentes linguagens, compartilhando suas criações entre si e criando obras inéditas e feitas coletivamente, quebrando a ideia de um autor único que o sistema de arte costuma estabelecer. No Afrotonizar.Lab de 2021, o amapaense Wallef Dias desenvolveu estudos que levaram à pesquisa do seu curta Vai e vem que teve a trilha sonora desenvolvida por Jerônimo Sodré. Nessa pesquisa desenvolvida por Dias, a memória foi fio condutor para sua criação, através de suas memórias de infância e sua relação com a rede que o seu pai costumava descansar. Assim, o artista foi ativando, através das palavras, as imagens que remetiam às brincadeiras que costumava fazer quando criança e como essa memória atravessava a sua formação enquanto indivíduo. Para a potiguar Andrielle Mendes, a fotografia foi o dispositivo que a reconectou com as memórias que queriam ser esquecidas, por estarem ligadas diretamente a processos e dores causados pelo trauma colonial. A série Embaralho, criada pela artista, representa a possibilidade de usar a arte como dispositivo para criar o que parece impossível, mas não para a imaginação.

“Os pés no limiar da porta representam o meu avô materno, que fugiu de casa na juventude e ao retornar, décadas depois, se casou com minha avó. Minha mãe chegou na família um tempo depois, trazida com semanas de vida, por ele. Eu nunca o conheci.”
Andrielle Mendes

“Eu tinha cinco anos quando ela se recusou a ir à festa das Mães na escola. O que as outras crianças diriam, quando eu chegasse na escola sem a minha mãe? No fim, ela decidiu ir. Mas se negou a chegar um pouco mais perto na hora da foto [Por meio de uma técnica que chamo de colagem emocional, retirei com a tesoura os espaços e aproximei quem estava separado].
Andrielle Mendes
Desta forma, acredito que, hoje, a plataforma Afrotonizar se torna um lugar de estudo e experimentação. Para Fred Moten e Stefano Harney,³ o estudo negro nos permite investigar nossas conexões e tecer os nossos mantos escuros — é sobre encontro e pertencimento. Ao propor o exercício de imaginação política coletiva, estamos também difundindo nossas sementes, caçando solo fértil para nossos sonhos e encruzilhadas para arriarmos nossas oferendas criativas e nos conectarmos com os nossos pares. O estudo negro é uma estratégia de livramento que possibilita acionar a luz negra que nos faz chegar àquilo que está ordenado pelo colonial e é ocultado por ele. Através do encontro e da experimentação da revisitação de memórias, é possível criar tecnologias e ferramentas que operam em outras lógicas de vida em sociedade no mundo. Imaginar o mundo outramente é uma prática de livramento, onde se confabula um modelo de sociedade onde a diferença cultural não seja organizada pela separabilidade.
Tudo o que você toca
Você Muda.
Tudo o que você Muda
Muda você
A única verdade perene
É a Mudança.
Deus É Mudança
– Semente da Terra: os livros dos vivos
Parábola do semeador – Octavia Butler
Nesse tempo em que construo e escrevo histórias, quero cavar nesta pele-mundo os sonhos que andam me protegendo. Para além de uma iniciativa de produção cultural, Afrotonizar, para mim, é um movimento espiralar, que me permite estar em conexão e combinar coisas entre as minhas. Espero que, a partir desse gesto, possamos desmantelar de alguma forma as ferramentas que mantêm o mundo na lógica perversa da separabilidade. Pois, apesar das estatísticas e porta-bandeiras de representatividade, continuo tentando me mover sob a energia divina da criação, onde minha imaginação me permite viver para além da captura. Eu não desejo apenas o fim do colonialismo, mas sim a destruição de tudo o que o faz sentido nele. Não se trata apenas de um jogo de peças de encaixe, é sobre aquilo tocado, aquilo que pode transcender a razão e se mover dentro do que o sistema diz ser impossível.
¹ Leda Maria Martins, Afrografias da memória: o Reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
² Para Denise Ferreira da Silva em A dívida impagável (São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019, p. 38), a modernidade guiada pelos poderes da razão foi estruturada em três pilares ontológicos: (a) separabilidade, isto é a ideia que tudo que pode ser conhecido sobre as coisas do mundo deve ser conhecido pelas formas (espaço e tempo) da intuição e das categorias do Entendimento (quantidade, qualidade, relação, modalidade) –, todas as demais categorias a respeito das coisas do mundo permanecem inacessíveis e portanto, irrelevante para o conhecimento; e consequentemente a (b) determinabilidade, a ideia de que o conhecimento resulta da capacidade do Entendimento de produzir conceitos formais que podem ser usados para determinar (isto é, decidir) a verdadeira natureza das impressões sensíveis reunidas pelas formas da intuição e a noção de (b) sequencialidade, que descreve o Espírito como movimento no tempo, um processo de autodesenvolvimento, e a História como a trajetória do Espírito.
³ Fred Moten e Stefano Harney. The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study. Wivenhoe: Minor Compositions, 2013.
Naymare Azevedo é mestre em Cultura e Sociedade pelo Instituto Milton Santos na Universidade Federal da Bahia e Gestora de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Diretora do curta-metragem “Terreiro de Memórias” e “Criativos do RN”. Idealizadora e coordenadora geral da plataforma Afrotonizar. Diretora e fundadora da Ayabá Produtora Criativa e Audiovisual. Co-fundadora da MIMB – Mostra Itinerante de Cinemas Negros e Produtora Executiva do Centro Afrocarioca de Cinema. Diretora criativa e executiva do Recôncavo Afrofestival. Coordenadora do Gira Afro.Lab de desenvolvimento de projetos de realizadores negros.