Fundamos o projeto curatorial aarea no início de fevereiro de 2017, quando nos propusemos explorar a cena artística brasileira, comissionando trabalhos de artistas cuja produção não apresenta características ou interesses necessariamente relacionados à tecnologia ou à internet. Na maioria das vezes, são artistas que pela primeira vez lidam com o digital.
As obras são exibidas por um determinado período de tempo (alguns projetos tiveram duração de 24 horas, outros, de três meses, a depender da proposta) e, depois disso, elas “saem do ar”, ou seja, deixam de estar disponíveis ao público, permanecendo armazenadas em um servidor acessível apenas à equipe do aarea, e constituindo um arquivo que nos dias de hoje conta com mais de cinquenta trabalhos representativos de um recorte contemporâneo experimental e investigativo na arte digital brasileira. Essa abordagem definiu o formato e a atuação do aarea, diferenciando-o de outras iniciativas nacionais ou internacionais dedicadas à apresentação de obras digitais. O conceito do projeto reflete-se em seu próprio nome: aarea, a-area, com a partícula negativa “a”, o que sugere a negação de uma área fixa, estável, definitiva.
É evidente que o ambiente digital já se revelava um campo promissor para a produção de artes visuais muito antes da recente pandemia de Covid-19 que irrompeu em 2020. Porém, o período pandêmico acentuou o interesse de artistas, instituições, curadores e, paralelamente, do público, por produções que pudessem ser criadas e exibidas na internet. Apenas no Brasil, no final do século 20 e na primeira década do século 21, artistas como Augusto de Campos, Regina Silveira, André Vallias, Lucas Bambozzi, Analivia Cordeiro, Eduardo Kac e Giselle Beiguelman já utilizavam os recursos tecnológicos que os computadores disponibilizavam na época, explorando de formas inovadoras as ferramentas digitais.
O período iniciado nos anos 1980 marca a descoberta do computador e de seu potencial na exploração plástica, conceitual e poética. Desde então, o modo de produção de uma obra digital não sofreu grandes modificações: o desenvolvimento e implementação de um trabalho com frequência exige colaboração com técnicos especializados, já que os artistas muitas vezes não dominam por completo a linguagem de programação. A produção ainda hoje permanece colaborativa, facilitada por novos softwares e pelo crescente interesse de programadores e profissionais da tecnologia pelas possibilidades artísticas e até mesmo econômicas à disposição, como no caso do NFT. No entanto, a maior mudança nesse panorama se deu na recepção dessas obras: se antes circulavam fundamentalmente por nichos especializados, nos últimos anos verificamos uma popularização da arte digital, causada em grande parte pelo modo como passamos a habitar de forma desmedida a internet, impulsionados também pelas transformações provocadas pelas redes sociais e seus algoritmos.

Captura de tela
Como o aarea surgiu em um modelo inédito e experimental, foi ao longo de seu processo que os desafios inerentes ao formato se apresentaram, sobretudo no tocante ao nosso arquivo. Sempre em interlocução com outros agentes e instituições brasileiros e internacionais, fomos em busca das possíveis soluções e ideias relativas ao acervo do projeto, como arquivamento, registro, conservação e restauro. O formato inaugural da apresentação temporária das obras revelou-se acertado, pois descobrimos que manter um arquivo cada vez maior de trabalhos funcionando simultaneamente não é uma operação viável (mesmo no caso de instituições internacionais com orçamentos robustos), dado o fator de rápida obsolescência de softwares e outros sistemas. Nesse sentido, mesmo que um dos aspectos fundamentais da internet seja a ampla constituição e o acesso a arquivos, podemos fazer a analogia do aarea com um espaço físico de arte, como um museu ou galeria, no qual as exposições ocorrem em um determinado tempo para depois serem desmontadas, dando lugar às subsequentes, e sobrevivendo apenas em registros.
Outro aspecto marcante da internet é a facilidade na realização de transmissões ao vivo e alcance em uma amplitude de territórios, algo que interessou a muitos artistas comissionados pelo aarea. Nesses casos, em relação ao arquivo, percebemos logo nos primeiros trabalhos que uma obra realizada ao vivo, por exemplo, resultaria em um arquivo dissociado de sua natureza performativa, que envolvia a presença do público diante das telas.

Captura de tela
Consideremos agora provocações e impasses colocados ao aarea por suas próprias obras comissionadas. Realizada no primeiro ano do projeto, Arquivos anexos (2017), de Fabio Morais, envolvia a transmissão ao público de um texto escrito em tempo real, permitindo livre acesso ao editor de texto do artista, ou seja, tratava-se de uma escrita performada, acessível ao visitante que ingressasse no site no momento de sua execução. Passado o período da performance de escrita em tempo real, o que permanece de Arquivos anexos é apenas seu texto corrido publicado em uma página de internet. Já a obra Andar em círculos (2018), de Marcius Galan, representava graficamente, ao vivo para o visitante do aarea, o percurso de cinco caminhadas (de cerca de cinco horas cada uma) pela cidade de São Paulo nas quais Galan tentava traçar um círculo perfeito percorrendo as ruas da cidade. O registro da obra é a sobreposição desses desenhos digitais.
Recordamos aqui essas duas obras em especial porque seus arquivos, quando observados de forma isolada, não são capazes de conservar plenamente o cerne da obra, restando, por isso, apenas registros de seu acontecimento performativo. Mais uma correspondência com o campo físico da arte caberia aqui: o registro e a sobrevida de obras de arte digitais se assemelham às soluções já aplicadas na documentação de performances. Vídeos, fotografias, partituras, instruções, relatos etc, podem ser utilizados para traduzir essas obras da melhor forma em formato de arquivo.

Aço
5 peças, aprox. 30 x 25 x 0,5 cm (cada)
Foto: Mayra Azzi
Curiosamente, em paralelo à documentação realizada pelo acervo do aarea, Morais e Galan criaram depois obras derivativas desses trabalhos, ambas gravadas em metal, um material conhecido por sua longevidade. Tratam-se de obras que, apesar de autônomas, são indissociáveis de seu momento performativo original e que, de certa forma, aliam-se na tentativa de sua preservação e seu caráter em essência fugidio.
Sobre as autoras
Livia Benedetti é curadora de arte, pesquisadora e cofundadora da plataforma aarea.co. Cursou mestrado em mediação de arte na Université Paris VIII e artes visuais na Universidade de São Paulo. Desde 2007, vem atuando em projetos curatoriais e educativos em instituições culturais como Sesc, Pivô e Centro Cultural São Paulo. Em 2016, foi curadora associada da Bienal dinamarquesa FotoBiennale, no Brandts Museum, e, em 2019, integrou o programa Emerging Professionals do Para Site, em Hong Kong. Como escritora, vem publicando seus textos em revistas, livros e catálogos de arte.
Marcela Vieira é cofundadora e curadora do site de arte aarea. Em sua trajetória em artes visuais, além da curadoria, atuou em equipes educativas e na redação, tradução e edição de textos para instituições culturais e galerias de arte. Com interesses multidisciplinares, é também editora da Revista Rosa e tradutora literária (francês-português). É doutora em semiótica pela Universidade Paris 8 em cotutela com a Universidade de São Paulo. Reside em Los Angeles desde o início de 2022.