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Home Artigos Arte e loucura na Bienal de São Paulo

20 set 2024

Arte e loucura na Bienal de São Paulo

Vista de obras de Arthur Bispo do Rosário durante a 30ª Bienal de São Paulo – <i>A iminência das poéticas</i>
Vista de obras de Arthur Bispo do Rosário durante a 30ª Bienal de São Paulo – A iminência das poéticas © Leo Eloy / Fundação Bienal de São Paulo

Uma Bienal incomum 

Intensas transformações marcaram a Bienal de São Paulo de 1981. O início da abertura política do país depois de anos de ditadura militar é sua característica mais importante, se considerarmos essencial a relação entre a arte e a vida. Essa dimensão política interessa muito à nossa reflexão aqui, dedicada ao módulo dessa Bienal intitulado Arte incomum, primeira exposição internacional do gênero no Brasil.¹ E que gênero seria esse?

 

Capa do terceiro volume do catálogo da 16ª Bienal de São Paulo

 

Segundo o curador geral da mostra, Walter Zanini, tratava-se de uma produção altamente criativa, à margem do sistema oficial da arte, criada por pacientes psiquiátricos e por “indivíduos desatados dos contextos normais da visualidade”, que “sabem fazer fluir da lógica de seus mundos inconscientes uma grande força libertária”.² Essa definição nos ajuda a entender o gênero em questão, uma derivação do que o artista Jean Dubuffet nomeou de arte bruta em 1945.³ Ainda que esse módulo não fosse composto apenas por obras que pertenciam a acervos de hospitais psiquiátricos, a maior parte dos artistas eram pessoas que haviam sido internadas em tais instituições. Por esse motivo, Arte incomum nos ajuda a pensar a relação entre arte e loucura e os aspectos sociais, culturais e políticos que essa interlocução ganharia no Brasil a partir do final dos anos 1970, produzindo reflexos até os nossos dias. 

 

A Bienal de 1981 hoje 

Em 1979, o cineasta Helvécio Ratton lança o documentário Em nome da razão, que tanto retrata quanto denuncia o horror a que eram submetidos os sujeitos internados no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais.

Em 1980, na Colônia Juliano Moreira, antigo hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro, o psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart iniciou uma pesquisa que lhe permitiu registrar e denunciar a violência e as condições de vida desumanas naquela instituição. Do projeto, dois filmes surgiram: O prisioneiro da passagem (1982), sobre o artista Arthur Bispo do Rosário, e Região dos desejos (1983), sobre as mulheres internadas naquele hospício.

 

Detalhe da obra Navios de guerra, de Arthur Bispo do Rosário, durante a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

 

Tais filmes refletem o cenário da psiquiatria brasileira naquele tempo, revelando, ainda, determinada relação entre arte e loucura no Brasil em um momento histórico de grande importância para o país e para o campo da saúde mental. Com o início da redemocratização, após quase vinte anos de nefasta ditadura militar, diferentes atores e movimentos sociais, que começavam a se fazer representar naquele momento, estavam empenhados em desconstruir a lógica manicomial e seu entendimento da loucura. Nascia a Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Movimento social abrangente, a reforma deve ser entendida como um conjunto de modificações voltadas tanto para o cuidado em saúde mental quanto para “as relações discursivas que se vêm estabelecendo entre a psiquiatria, demais disciplinas de saúde e do campo social, e as instituições e movimentos sociais”.⁴ Tarefa difícil, que ainda estamos por completar, apesar dos avanços que já tivemos.

Dentre as dimensões que compõem a reforma, a sociocultural, na qual a arte se insere, abarca seu objetivo maior: transformar o imaginário social no que diz respeito à loucura e anormalidade, estabelecendo outras relações da sociedade com essas concepções.⁵ E, se lembramos desses filmes, é por nos permitirem sublinhar o contexto de pujantes transformações no país, no campo da saúde mental e na relação entre arte e loucura, contexto no qual se inscreve o módulo Arte incomum da XVI Bienal de São Paulo. Embora não se possa falar de uma relação direta entre a proposta do evento e os acontecimentos do campo da saúde mental, também é impossível desconsiderar que, justamente nesse período, a Reforma Psiquiátrica Brasileira começou a construir seus contornos, e com a arte como grande aliada. Então, qual relação é possível pensar?  

No Brasil, desde os anos 1920 e 1940, com as importantes e inovadoras experiências de Osório Cesar, Flávio de Carvalho, Ulisses Pernambucano, Nise da Silveira e Mário Pedrosa, arte e loucura já se articulavam em propostas clínicas, enquanto também se valorizava as produções dos pacientes enquanto arte. No cenário internacional, os primeiros trabalhos sobre o tema, com suas peculiaridades e diferenças, foram desenvolvidos já na segunda metade do século 19,⁶ por vezes em propostas segregadoras e patologizantes, outras voltadas para a clínica numa lógica psiquiátrica e, a partir dos anos 1940, mais fortemente ligadas a discussões estéticas, inaugurando termos como arte bruta ou outside art. 

 

Vista de obras de Arthur Bispo do Rosário na 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

 

A Reforma Psiquiátrica Brasileira possui um caráter específico, no qual a pertinência da psiquiatria e seus aparatos discursivos e de tratamento são postos em questão. Portanto, não basta que as obras de sujeitos em sofrimento psíquico sejam legitimadas pelo sistema da arte, deixando intactas as normas que os encerram em categorias como “doente mental” e “artista louco”. Cumpre mesmo interrogar, por meio das obras, tais categorias. Se a arte bruta pretendeu uma contestação do status quo da arte e da cultura, para a problematização do agenciamento social da loucura, ela ainda perpetua o isolamento e a marginalização, já que deixa bem demarcadas, de um lado, a arte e, de outro, a arte dita “louca”. E isso tem consequências. 

A psicanalista Tania Rivera⁷ alerta que, embora a arte bruta valorize as produções artísticas de sujeitos considerados “loucos”, ela se torna uma categoria segregadora. Isso porque reforça e naturaliza o isolamento de tais artistas, imposto pela lógica manicomial, já que concebe a criação como expressão espontânea e autônoma, possível a tais sujeitos justamente por estarem apartados da cultura e da vida social. E, em nome de uma determinada representação do “louco” como gênio ingênuo e livre, desconsidera toda uma existência marcada também pelo sofrimento psíquico. O que permanece intocado com a noção de arte bruta é a própria lógica manicomial, que abole o sujeito e suas capacidades de trocas na cultura, algo incabível nos dias de hoje. 

Passados quarenta anos da mostra, o artista e terapeuta Lula Wanderley, pensador e agente fundamental para a relação entre arte e loucura em nosso país, em seu texto “Incomuns somos todos”⁸ também problematiza a ideia de uma “arte incomum”. Entretanto, ele considera que o módulo preparou nosso olhar para os acontecimentos que marcaram os campos da saúde mental e da arte nos anos 1990, citando artistas como Lygia Clark e Arthur Bispo do Rosário. Wanderley afirma, no entanto, que não há mais sentido em falar em arte bruta, incomum ou de “loucos”, referindo-se a Bispo do Rosário, que não participou da mostra de 1981, mas que em 2012 se tornou o artista norteador da 30ª Bienal de São Paulo, A iminência das poéticas, e que em 2023 retornou à 35ª edição do evento, intitulada coreografias do impossível,⁹ ao lado de Aurora Cursino dos Santos e Ubirajara Ferreira Braga, artistas que haviam sido internados no Hospital do Juquery. Bispo do Rosário é arte e sua apresentação a esse universo se deu por meio de uma trajetória bastante complexa, que envolve a Reforma Psiquiátrica Brasileira, o filme de Denizart e mudanças na concepção artística propostas pela arte contemporânea, elementos que trazem para o mundo fechado do hospício, no exemplo de Bispo do Rosário, a mente aberta do crítico de arte Frederico Morais e de tantos outros artistas que, na época, contribuíram para a contestação da lógica psiquiátrica manicomial. 

 

Vista de obras de Ubirajara Ferreira Braga durante a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

 

Em sua proposta clínico-política, a reforma interrogou, e desejamos que ainda resista e continue a interrogar, os alicerces sociais, culturais e políticos que sustentam nossas formas de viver no mundo. E isso não incide apenas sobre aqueles diagnosticados com transtorno psíquico: é algo que implica todas, todos e todes. Bispo do Rosário é testemunho disso, de como uma obra que nasce de uma intrincada, singular e paradoxal relação com a loucura¹⁰ – e que não por isso é uma “obra louca” ou patológica, fruto de mera desrazão – muda o que se entende por arte e loucura e, consequentemente, pode mudar nosso entendimento sobre nós mesmos, nossas formas de estar no mundo e a cultura de exclusão imposta aos corpos e existências que não se enquadram no dito “normal”. 


¹ Walter Zanini. “Introdução”, in XVI Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1981, p. 20. Catálogo de exposição.

² Walter Zanini. “A Bienal e os artistas incomuns” in Arte incomum. VI Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1981, p. 7. Catálogo de exposição.

³ Segundo Dubuffet, a expressão deveria caracterizar exclusivamente o conjunto de obras que ele reuniu. Por esse motivo, nos parece, ele também se recusa, como registrado em carta à Bienal, a permitir que a expressão seja utilizada pela exposição, além do fato de ver nela uma contradição, como discutido por Josette Balsa no catálogo da mostra: “como colocar ao lado da arte cultural, resultante de um processo histórico de formação, uma não-arte, representada por obras afastadas da tradição, do ensino codificado, que não permitem o jogo crítico da comparação?” Cf. Josette Balsa. “A arte é um antidestino”, in Arte incomum. VI Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1981, p. 48. Catálogo de exposição.

⁴ Pedro Gabriel Delgado. As razões da tutela: psiquiatria, justiça e cidadania do louco no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/Ensp, 1995, p. 42.

⁵ Paulo Amarante apud Flavia Corpas. O manejo das oficinas terapêuticas no cuidado em saúde mental. Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria da UFRJ. 2004, p. 30. Dissertação de mestrado.

⁶ Para uma abordagem crítica sobre o tema, cf. Hal Foster. Tierra de nadie: sobre la acogida del arte de los enfermos mentales. La Colección Prinzhorn: trazos sobre el bloc mágico. Barcelona: Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2001.

⁷ Tania Rivera. “Contra a arte bruta”, in Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, 25(4), pp. 757-779, dez. 2022.

⁸ Lula Wanderley. “Incomum somos todos” in Paulo Miyada (org). Bienal de São Paulo desde 1951. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2021, pp. 191-200.

⁹ Na 35ª Bienal, a obra de Bispo do Rosário foi exposta no mesmo espaço em que havia uma obra de Rosana Paulino, cuja poética aborda questões de gênero, sociais e étnicas. Essa opção de montagem, nos parece, potencializa outras leituras, que incluem a negritude do artista.

¹⁰ Cf. Flavia Corpas. Arthur Bispo do Rosário: do claustro infinito à instalação de um nome. Rio de Janeiro: Departamento de Psicologia – PUC-Rio, 2014. Tese de doutorado.


Sobre a autora

Flavia Corpas é psicanalista, curadora independente de artes visuais, doutora em psicologia clínica pela PUC-Rio, professora do curso livre Arte e Psicanálise do MAM-SP, organizadora do livro Arthur Bispo do Rosário: arte além da loucura, do crítico de arte Frederico Morais e co-fundadora do P_A_F – Grupo de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Feminismo.

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