Ter uma experiência de compartilhamento sobre o estado atual da produção artístico-cultural, investigando estratégias em diferentes contextos contemporâneos é um acontecimento pluralista de abertura em práticas curatoriais contemporâneas. Múltiplas associações (não pré-determinadas) podem ser decorrentes das interações: no primeiro encontro do workshop Ferramentas para organização cultural da 31ª Bienal de São Paulo, “Escrevendo histórias”, as relações (e seus frutos) estão abertas às possibilidades.
Escrever história é uma ação que está condicionada a uma experiência de presentificação. A história das exposições é simultaneamente dependente do passado (pela origem histórica e função social) e do futuro (não raro apresentando uma especulação premonitória em relação ao what’s next ou uma espécie de proposição para um to see what's coming). Com um dispositivo de experimentação invocado nessa prática curatorial, a arte está aliada à filosofia na mediação entre “o passado teimoso e o um futuro insistente”, ajudando “a dar à luz o mundo (…) ainda não nascido”1 – que pode, inclusive, não existir. Como falar de coisas que não existem?
A voz curatorial é um coro afinado que enfoca as possibilidades da construção da experiência do evento (e não exclusivamente da exposição em si). O grupo heterogêneo, cujas trajetórias individuais oscilam entre experiências institucionais e iniciativas independentes – não raro com trajetória em ambas as esferas – tem um interesse comum: práticas curatoriais. O grupo é, sem dúvida, um agente reverberador no processo de construção dessa proposta.
A potência da arte está no centro do projeto, nas potencialidades que advém do encontro. Somos agentes do campo artístico que talvez não tivéssemos outra oportunidade de imersão no intenso convívio, em 5 dias de 8 horas contínuas de debates – e embates. Deslocados dos seus contextos de origem – espacial e simbólico – um estranhamento inicial está restrito à limitação da compreensão da expectativa da proposta: o quê, por que, para quem, qual o produto final a ser construído. De início, pontos múltiplos no coletivo parecem tender à construção de um “grande relato”. O conflito, a dúvida e o enfrentamento são também ferramentas nesse caldo com ingredientes e línguas diversas. A experiência da troca teórica e das ações práticas não são fatos ordinários. Nesse “coletivo inventado” onde se questionam criticamente os possíveis processos de transformação contidos nas experiências visíveis e invisíveis, as relações do dentro e fora, talvez o “coletivo inventado” seja o “entre”.
Dar tempo e espaço para construir, dar corpo ao silêncio. O que fazer, a partir disso? Maio está próximo. Os frutos? O tempo dirá. Esse é um espaço para dar vazão às espontaneidades, ao improviso, às infinitas possibilidades que decorrem de um encontro.
Fragmentos de histórias dos participantes e o que há dentro da caixa de ferramentas?
What we have to learn from each other? / O que temos a aprender com os outros? A partir das inquietações do momento inaugural, a pergunta da equipe curatorial ecoa e cada participante é convidado a apresentar parte do seu trabalho focando em algum momento histórico que seja relevante para o contexto cultural que atua.
Gabriela Motta
Gabriela Motta com sua voz potente abriu este espaço de trocas entre os participantes. Ela trouxe uma lembrança pessoal para assinalar o momento histórico de onde falava. Qual é sua memória mais antiga em relação a arte? Esta foi a pergunta que pousou na cabeça de quem a ouvia. Se os pensamentos pudessem ser gravados e editados como em um filme, uma bela sequência de cenas se formaria das recordações de cada um que estava lá. Para Gabriela, curadora e pesquisadora gaúcha, foi o encontro de um catálogo da Bienal de São Paulo, em 1989, que despertou o seu interesse pela arte. Muitos anos depois, o tema bienal foi o foco de sua dissertação de mestrado cujo o tema era o modelo expositivo da Bienal do Mercosul. Na sua pesquisa deu ênfase a entrevistas com artistas que participaram de edições da megaexposição porto alegrense. Atualmente, Gabriela está fazendo doutorado sobre a obra monumental dos artistas brasileiros Nelson Felix e Nuno Ramos.
Ana Maria Maia
Um homem anda no sentido contrário de uma procissão. Este homem era um artista. Este artista era Flávio de Carvalho. O mesmo que na década de 1960 saía as ruas de saia. Essa foi a imagem que a curadora, feliz por ser independente, Ana Maria Maia nos trouxe no seu relato em que pergunta: qual seria a função social da arte? Ana Maria natural do Recife e residente em São Paulo, já inscreveu essas perguntas em alguns dos projetos curatoriais que participou. Trouxe para os companheiros o catálogo de seu projeto mais recente: o 33º Panorama de Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde atuou como curadora-adjunta. Nesta mostra o desafio para os artistas era pensar como arquitetos. E arquitetos foram convidados a elaborar desdobramentos da planta do prédio do museu. O espaço do MAM-SP, sua história e contexto verteram-se tangivelmente e conceitualmente pelas obras no 33º Panorama. As ideias de Ana Maria transbordaram para a apresentação seguinte.
Lucas Oliveira
“Podemos vazar a proposta do museu”. Esta foi uma das frases que Lucas Oliveira cunhou em sua apresentação. Foi fortuito que o educador comentasse sobre seu trabalho no MAM neste exato momento, quando ainda o grupo estava com o desenho arquitetônico do museu em mente. Ele nos contou que cerca de 800 a mil adolescentes se reúnem debaixo da marquise do MAM nos fins de semana. Uma multidão que o museu gostaria de abrigar não só debaixo do vão de concreto. Além desses há outros públicos para os quais o MAM promove acessibilidade. Um deles é a comunidade surda paulistana. Logo, o coletivo de educadores do museu produz frentes de ação que atendem o contexto, como publicações sobre obras da coleção e a festa multissensorial SenCity no MAM, uma iniciativa para aproximar arte e música aos que não podem ouvir. Ainda sobre inclusão, Lucas também comentou da sua pesquisa pessoal que quer desenvolver futuramente um mestrado a partir do mapeamento de artistas comprometidos com a afirmação da identidade gay na década de 1980 em São Paulo.
Mónica Amieva
Ainda sobre educação, a mexicana Mónica Amieva falou das instituições em que já trabalhou. Como professora de filosofia e arte deu aulas na Universidad Autónoma de Barcelona e Universidade Iberoamericana e no setor educativo atuou em museus como o Peggy Guggenheim em Veneza e o Guggenheim de Nova York. Atualmente trabalha no Museu Tamayo na Cidade do México. Foi deste último que trouxe exemplos de seus projetos. Como curadora educativa trocou uma palavra para se mudar todo um conceito. De ‘serviços educativos’ o departamento passou a ser de ‘estudos educativos’ para arraigar ao setor a função de construção de conhecimento, através de transversalidade, experimentação e horizontalidade. Essas propostas emergiram de sua pesquisa acadêmica sobre a Internacional Situacionista (1957-1972), coletivo político e de vanguarda artística. Ela situa sua fala nas estratégias revolucionárias do movimento que buscava dissolver a arte na vida cotidiana para subverter o ordenamento social. Mónica também contou sobre uma rede social de arte-educação no México para integrar quem trabalha na área e dar mais corpo a esse tipo de atividade no país.
Lígia Afonso
Uma fábrica desativada na cidade de Guimarães, Portugal, tornou-se um lugar gerador de manifestações artísticas. Este foi o cenário que a curadora Lígia Afonso expôs no primeiro dia de encontro, não sem antes dar o contexto para tal. Guimarães é o berço da nacionalidade portuguesa e foi eleita a Capital Europeia da Cultura em 2012. A cidade de 50 mil habitantes recebeu 50 milhões de Euros para investimentos culturais. Um bem-vindo paradoxo para a conjuntura política atual do país, já que o governo de direita que assumiu o poder em 2008 destituiu o ministério da cultura, explicou a curadora. Como desfrutar o máximo da oportunidade para garantir um impacto a longo prazo e de grande alcance? Ligia, coordenadora do Laboratório de Curadoria, parte da programação de eventos da capital da cultura, fez do prédio industrial de Guimarães uma praça de encontro e plataforma discursiva por um ano. Seu projeto incluía inserções e cruzamentos com os habitantes da cidade e artistas convidados para residências no local. Ela também lançou mão de uma arquitetura participativa que ativava o espaço da fábrica e seu entorno. A experiência rendeu uma série de publicações que Ligia compartilhou com os participantes do workshop.
Sabrina Moura
Historiadora de formação, Sabrina Moura disse que entrou no meio de arte contemporânea em Paris (um bom lugar de ingresso para este mundo) quando fazia mestrado em Estética. De lá seguiu para Nova York para fazer um estágio profissional no MoMA. De volta ao Brasil, começou a colaborar com a Associação Cultural Videobrasil. Ela faz a curadoria do programa público do festival que comemorou 30 anos de existência. Os eventos, que incluem debates não somente relacionados à arte, mas também a outras áreas do conhecimento, acontecem no espaço expositivo, para ativar a exposição e vice-versa. Sabrina também é responsável pelo programa de residência e da ‘Plataforma: VB’, um arquivo online de todo material acumulado nas últimas três décadas. Os itens do arquivo são agrupados em constelações que fornecem linhas guias que conectam cerca de três mil títulos. Sobre sua pesquisa pessoal, comenta que o legado de Walter Zanini é um referencial. Sabrina ainda nos conta que seu atual projeto envolve escolas do Brasil e Cabo Verde e examina como as histórias sobre a colonização são contadas.
Daniel Jablonski
O artista e pesquisador carioca Daniel Jablonski escolheu como momento histórico para falar de sua prática a virada do século 19 para o 20 e suas proeminentes primeiras décadas. Contudo, ele não parte de algo inerente ao período, que Daniel diz ser o auge do racionalismo europeu. Ele escolhe algo que parece anacrônico à profusão artística do começo do século: o estudo do discurso mitológico reacendido pelos intelectuais e artistas da época. Por exemplo, por que Freud retoma o mito de Édipo para tratar do mal-estar da civilização moderna? Essa é a questão que instiga sua pesquisa e que culminou em um trabalho autoral e coletivo, curatorial e artístico chamado Vous Voici. Antes de chegar no projeto, Daniel ainda cita exemplos da literatura para explanar sobre as diferenças que enxerga entre o mitológico “concreção” e ficcional “abstração”. O discurso mitológico parte de “um índice ou rastro para alcançar a abstração e completude”. É essa estrutura que parece fundamentar Vous Voici – a compilação de biografias às avessas. Objetos íntimos de amigos, imagens de obras e de seus ambiente de trabalho e entrevistas criam um acervo de histórias subjetivas que ao mesmo tempo são coletivas, e que acabam pertencendo ao contexto da qual são observadas ou ditas.
Caroline Menezes
A última pessoa a se apresentar antes do final deste intenso dia foi Caroline Menezes. Poucos minutos faltavam antes que todos colapsassem de cansaço quando a crítica de arte carioca se voluntariou. O seu ponto de partida histórico foi as provocações introduzidas pela herança de Marcel Duchamp em relação a prática curatorial. As estratégias curatoriais de Duchamp em exposições, como a Exposição Internacional de Surrealismo em 1937, criam um novo paradigma de espaço expositivo e alteram a maneira como o público age diante das transformações na arte. Estes novos conceitos de exposição possuem total coerência com o pensamento e a produção do artista, não somente no caso dos readymades mas também do Grande Vidro. Este então seria uma ampla metonímia do alcance das ideias de Duchamp: uma complexa composição maquínica que beira a abstração – mas também é uma imagem que pode ser re-significada pelo seu título enigmático A noiva despida por seus celibatários, mesmo – cuja transparência absorve o contexto em que está inserido. Como embevecer o contexto de um lugar de exposição artística ou revelar o contexto gerador de uma obra de arte? Essa pergunta e outras semelhantes, como a curiosidade quanto ao instante de encontro do fenômeno artístico com o público ou o posicionamento do observador-participante na arte contemporânea se refletem no trabalho de Caroline como escritora e curadora. Na produção textual, entrevistas e artigos críticos essas indagações se mostram, como na recente conversa com a artista cubana Tania Bruguera publicada no Studio International. Por sua vez, questões de transnacionalidade e o deslocamento da arte contemporânea aparecem na curadoria de mostras relacionadas à residências artísticas ou na gerência de coleções latino-americanas fora do continente. No final, ela mostrou o mais recente trabalho curatorial, duas exposições do pintor português Rui Macedo, que cria instalações pictóricas para desestabilizar o lugar do observador usando das artimanhas próprias das convenções da pintura.
Texto: Caroline Menezes e Michelle Sommer
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Notas
1 DEWEY, John. A arte como experiência. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010, pág. 46.
Links
Sobre o estudo de Gabriela Motta sobre a Bienal do Mercosul
Catálogo do 33º Panorama da Arte Brasileira de co-curadoria de Ana Maria Maia
Sobre a festa SenCity comentada por Lucas Oliveira
Publicações do Museu Tamayo onde Mónica Amieva trabalha
Site da Plataforma VB de concepção de Sabrina Moura
Programa de residência de Sabrina Moura
Site ainda em construção do projeto Vous Voici de Daniel Jablonski
Site do Studio International, publicação que Caroline Menezes trabalha
Entrevista com Tania Bruguera