por Mariana Leão
A 1ª Bienal de São Paulo, realizada em 1951, foi um marco fundamental para a história da arte brasileira, que inaugurou no país um modelo de exposição de arte moderna em grande escala e com pretensões internacionais. Antes de se tornar uma fundação independente em 1962, a Bienal era organizada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), ambos frutos da iniciativa do empresário de origem italiana Ciccillo Matarazzo. Lourival Gomes Machado, então diretor artístico do museu e de sua Bienal, expressa na apresentação do catálogo do evento suas principais intenções: “colocar a arte moderna do Brasil, não em simples confronto, mas em vivo contacto com a arte do resto do mundo, ao mesmo tempo que para São Paulo se buscaria conquistar a posição de centro artístico mundial”.
Embora São Paulo não tenha alcançado o mesmo status de grandes metrópoles artísticas, a Bienal desempenhou um papel decisivo ao inserir o Brasil no mapa de circulação artística internacional, tendo sido inclusive a primeira bienal a ser realizada no chamado sul global. Esse desejo de projeção no exterior atendia, sobretudo, aos interesses da elite econômica local – mobilizada pela figura de Ciccillo Matarazzo –, que buscava reforçar a imagem de modernidade da capital paulista e, de quebra, consolidá-la como centro industrial brasileiro. A empreitada também contou com o apoio do poder público, que via na Bienal uma oportunidade de dar visibilidade ao Brasil lá fora.
Em seus primeiros anos, e seguindo o modelo da Bienal de Veneza – realizada desde 1895 –, a Bienal paulista era dividida por representações nacionais organizadas de maneira independente pelos próprios países convidados. Para a primeira edição da mostra, Yolanda Penteado, esposa de Ciccillo, que tinha participação importante em seus muitos empreendimentos culturais, contou com o apoio do presidente Getúlio Vargas para percorrer países da Europa em busca de adesões. Yolanda foi uma figura diplomática e decisiva naquele contexto de articulação com estrangeiros, além de atuar como anfitriã nos eventos sociais relacionados ao evento. Já a representação brasileira era composta pelos artistas escolhidos pelo Júri de Seleção¹ a partir das inscrições dos interessados, além dos convidados especiais escolhidos pela diretoria executiva do antigo MAM. Na primeira edição foram convidados os pintores Candido Portinari, Lasar Segall e Emiliano Di Cavalcanti, os escultores Victor Brecheret, Bruno Giorgi e Maria Martins, e, por fim, os gravadores Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo.
Também seguindo o modelo da Bienal de Veneza, a Bienal paulista realizava uma premiação decidida por um júri composto por críticos brasileiros e internacionais de prestígio – os últimos, de modo geral, eram emissários das delegações estrangeiras.² As premiações eram divididas entre prêmios nacionais e internacionais para cada categoria – pintura, escultura, gravura e desenho. Havia ainda os prêmios regulamentares e os de aquisição. Os regulamentares, também chamados de primeiro prêmio ou grande prêmio, eram destinados às melhores obras de sua categoria segundo o júri, e recebiam uma quantia maior em dinheiro, além de mais destaque. Os prêmios de aquisição, por sua vez, tinham menor valor monetário e eram distribuídos para mais obras por categoria. Era prevista ainda a incorporação das obras ao acervo do antigo MAM de São Paulo.³ Esses prêmios significavam, portanto, a entrada permanente dessas obras nesse outro espaço de consagração e ajudavam a alimentar o acervo do museu.
Na 1ª Bienal de São Paulo, 36 artistas foram premiados, sendo apenas quatro mulheres – as brasileiras Maria Leontina e Tarsila do Amaral, a francesa Germaine Richier e a britânica Prunella Clough. Ao olhar para essas premiações, e entendendo os limites de uma perspectiva de estudo de caso, podemos investigar a atuação e os espaços de mulheres artistas naquele momento, além de trazer aspectos que ficaram às margens das principais narrativas sobre a Bienal e que lançam uma nova luz ao entendimento do evento.
Um primeiro aspecto que surge ao nos concentrarmos nessas quatro premiações é o fato de o conjunto laureado destacar a força das linguagens figurativas modernas no ambiente artístico da época. A história da arte brasileira considera a 1ª Bienal como um marco na difusão das práticas abstratas no país, dando ênfase especialmente à delegação suíça e à Unidade tripartida, de Max Bill, vencedora do primeiro prêmio de escultura estrangeira. Esse contato proporcionado pela Bienal é com frequência destacado como um fator importante para o início do concretismo brasileiro. E é essa visão teleológica que domina essas narrativas, mesmo quando um cenário mais completo é apresentado, com a presença ainda significativa das vertentes figurativas e dos intensos debates e posições contrárias ao abstracionismo. Nesse contexto, é importante ressaltar que muitas das obras premiadas na edição – escolhidas por um júri especializado e que tinha como principais critérios a qualidade e a novidade – possuíam poéticas figurativas relevantes e apreciadas naquele momento.
Um segundo aspecto evidenciado por esse recorte é a premiação de aquisição, um elemento pouco estudado e negligenciado pela historiografia tradicional, mas que merece maior valorização por revelar uma dimensão duradoura de um evento marcado por seu caráter efêmero. Além das quatro artistas da 1ª Bienal terem recebido prêmios de aquisição, um levantamento numérico dos prêmios distribuídos até a sétima edição, em 1963, demonstra uma clara preponderância de mulheres premiadas nas categorias nacionais de aquisição. Essa relação é particularmente evidente nos prêmios de pintura, que eram os de maior visibilidade do evento. Nesses anos, as mulheres artistas conquistaram 55% dos prêmios de aquisição na categoria de pintura nacional, enquanto, na categoria regulamentar, apenas uma mulher foi premiada entre oito vencedores (12%).⁴
Essa associação entre prêmios de aquisição e mulheres artistas pode ser analisada sob duas perspectivas. Em primeiro lugar, no contexto da época, os prêmios de aquisição eram considerados secundários em relação aos prêmios regulamentares, o que reflete uma relativa desigualdade de gênero. Afinal, as mulheres eram premiadas, mas raramente nas categorias mais prestigiadas. Em segundo lugar, os prêmios de aquisição devem ser considerados a longo prazo, pois as obras dessas artistas foram incorporadas ao acervo do museu, garantindo uma consagração permanente. No entanto, em termos históricos, esses trabalhos – que hoje integram o acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) – receberam pouca valorização. Com exceção da pintura de Tarsila, as demais não ganharam a visibilidade que mereciam. Nos últimos anos, o museu realizou algumas ações para revalorizar esse conjunto de obras, que é especialmente interessante por ter sido escolhido por um júri renomado, com base no contexto crítico da época, e por representar uma fonte rica para o estudo da arte daquele período, livre dos filtros das narrativas posteriores da história da arte.
A premiação de Maria Leontina
Maria Leontina foi vencedora de um prêmio na categoria de aquisição, de 50 mil cruzeiros, doados pela empresa Moinho Santista. A láurea foi concedida à sua obra Natureza-morta (1951), que reflete uma linguagem figurativa moderna, com influências pós-cubistas na geometrização da composição, além de dialogar com a produção de Giorgio Morandi e a pintura metafísica. Embora tenha sido um marco importante para uma artista que ainda despontava no cenário artístico do país, o prêmio também significava o segundo lugar em uma disputa acirrada pelo Prêmio Regulamentar de Pintura Nacional, o maior da categoria, no valor de 100 mil cruzeiros, patrocinado pelo Jockey Club de São Paulo. Esse prêmio foi concedido para a obra Limões, de Danilo Di Prete, que gerou grandes polêmicas. As críticas se concentravam em sua obra – questionando sua qualidade, ou apenas sua linguagem pouco moderna e inovadora –, mas também no fato de o prêmio nacional ter sido dedicado a um imigrante italiano.
O caso de Maria Leontina é interessante para refletir a associação entre prêmios de aquisição e mulheres artistas porque a polêmica gerou uma fonte rica de documentação com base na imprensa da época. Além disso, a artista recebeu outras duas vezes prêmios de aquisição em edições posteriores da Bienal, o que a torna um exemplo notável dos dados quantitativos levantados. Embora tenha perdido o primeiro prêmio para Di Prete, sua passagem pelo evento se revelou mais profícua para sua carreira do que a do vencedor. Leontina foi amplamente elogiada e recebeu a atenção do crítico francês Jacques Lassaigne – membro do júri de premiação –, o que lhe garantiu uma bolsa de viagem concedida pelo governo francês em 1952. O estudo desse caso nos indica uma realidade bastante complexa, que não pode ser reduzida a uma análise de preterimento.
A premiação de Tarsila do Amaral
Tarsila do Amaral recebeu o terceiro prêmio de pintura, 50 mil cruzeiros patrocinados pela reitoria da USP, pela obra Estrada de Ferro Central do Brasil (E.F.C.B.), de 1924. A obra se enquadra na produção pau-brasil de Tarsila, momento em que desenvolveu uma poética de inspiração cubista, buscando vincular signos de modernidade a um primitivismo considerado nacional. Essa premiação tem um caráter histórico que destoa das premissas de novidade do evento e evidencia o propósito de alimentar o acervo do antigo MAM, o que se nota tanto pelo fato de a obra não ter sido considerada para o prêmio regulamentar devido ao seu caráter histórico, quanto pelo fato de sua escolha complementar perfeitamente outras aquisições da artista feitas pelo museu naquele mesmo ano. Em 1951, A negra (1923) e Floresta (1929) foram incorporadas ao acervo do antigo MAM. Assim, com a inclusão de E.F.C.B. por meio do prêmio de aquisição, o museu passou a responder a uma narrativa da produção de Tarsila na década de 1920, considerada a mais importante na trajetória da artista.
É interessante ressaltar que a obra respondia aos valores de modernidade da Bienal, não por sua atualidade – tendo sido criada na década de 1920 –, mas por seu tema. E.F.C.B. evocar uma imagem urbana e moderna a se imiscuir no ambiente brasileiro, bastante estereotipado. Dessa forma, existe um diálogo entre a modernidade retratada em sua composição e a imagem cosmopolita que a Bienal tencionava construir para o Brasil. Em 1951, Tarsila se encontrava em um momento de relativa marginalidade, quando a centralidade da artista não estava consolidada nas narrativas sobre o modernismo. Mesmo assim, sua premiação mostra que havia figuras importantes que já defendiam sua relevância, caso do crítico Sérgio Milliet, que integrava o júri de premiação. O prêmio trouxe uma visibilidade pontual para a artista, mas não teve grande impacto em sua trajetória durante a década de 1950.
A premiação de Prunella Clough
A artista britânica Prunella Clough recebeu o segundo prêmio de gravura estrangeira no valor de 10 mil cruzeiros, doados por T. Janer Comércio e Indústria. Seu conjunto de litografias, Jelly Fish [Medusa], de 1949, Maize [Milho], do mesmo ano, Still Life with Pear [Natureza-morta com pêra], de 1950, e Plant in a Greenhouse [Planta em uma estufa, também de 1950, entraram para o acervo do antigo MAM como prêmio de aquisição. Nessa ocasião, a litografia Eel Net [Rede para enguias], de 1949, também foi incorporada ao acervo como parte de um conjunto de gravuras doadas pelo British Council para a instituição. Esse conjunto foi exposto na Bienal pela delegação britânica como uma forma de compensar o envio reduzido e improvisado de obras devido à coincidência do evento brasileiro com a organização do Festival da Grã-Bretanha.

É curioso como, ainda que premiadas em conjunto na Bienal, as litografias de Clough não parecem ter sido propriamente pensadas enquanto conjunto. Todas são figurativas com um léxico moderno e exploram a experimentação com a técnica litográfica e o gênero da natureza-morta, bastante comum no período. Todavia, entre uma peça e outra, seus temas e linguagens pictóricas são muito diferentes. Clough era reconhecida por seus pares em seu país e teve uma atuação consistente, produzindo e lecionando durante toda sua vida. Ela é a única artista mulher que participou da delegação do Reino Unido nessa edição da Bienal, e, de quebra, da doação do British Council ao antigo MAM. Ao mesmo tempo, também é a artista britânica que ganhou mais destaque na premiação do evento, de modo que, mesmo sendo uma exceção, seu desempenho deve ser lido na chave da consagração.
A premiação de Germaine Richier
A obra de Germaine Richier, La Forêt [A floresta], de 1946, foi escolhida como o terceiro lugar na categoria de escultura internacional, com um prêmio de aquisição de 30 mil cruzeiros doados por A Equitativa Cia. de Seguros. A escultura, que representa uma criatura híbrida, meio humana e meio vegetal, está relacionada ao surrealismo e ao expressionismo. A obra se enquadra na produção da artista do pós-Segunda Guerra e se vincula às poéticas que buscavam expressar os sentimentos de angústia e desolação relacionados aos desastres que marcaram esse período.

Richier era uma escultora francesa bastante reconhecida naquele momento, mas que perdeu visibilidade após sua morte em 1959. Foi pouco lembrada pela historiografia da arte moderna até sua recente recuperação dentro do contexto de valorização de mulheres artistas que vem acontecendo nos últimos anos. Apesar do aparente consenso sobre a qualidade de suas obras, a imprensa e os críticos da época não se dedicaram a falar muito sobre seu o prêmio, ainda que a conquista apareça nos estudos sobre a artista como um dos marcos de sua visibilidade na década de 1950. Um outro indicativo bastante positivo sobre a repercussão do prêmio foi o envio de uma sala especial dedicada à artista para a 2ª Bienal de São Paulo, em 1953. Apesar de ofuscada (assim como o restante dos participantes) pela celebrada sala especial francesa centrada no cubismo – que trouxe a obra Guernica de Picasso (1937), o MAM do Rio de Janeiro adquiriu uma obra da artista para sua coleção durante a participação da 2ª Bienal. A obra incorporada, chamada La Ville (1951), é resultado da colaboração entre Germaine Richier e Hans Hartung em 1951, e possui uma placa, posicionada como pano de fundo, com uma pintura gestual do artista.
¹ Na 1ª Bienal, o Júri de Seleção foi composto por Tomás Santa Rosa, Quirino Campofiorito, Clóvis Graciano, Luís Martins e Francisco Matarazzo Sobrinho.
² O júri da 1ª Bienal foi composto por Lourival Gomes Machado, Tomás Santa Rosa, Sérgio Milliet, Emile Langui, Eric Newton, Jan Van As, Jacques Lassaigne, Jorge Romero Brest, Marco Valsecchi, René D’Harnoncourt e Wolfgang Pfeiffer.
³ Este acervo encontra-se atualmente no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), uma vez que durante o conturbado processo de separação do MAM e da Bienal, Ciccillo, com a intenção de dissolver o museu, doou todo seu acervo para a USP em 1963.
⁴ Este recorte, considerando as sete primeiras edições da Bienal, corresponde a uma fase inicial, em que os prêmios de aquisição funcionaram de maneira consistente. O levantamento numérico também revela outras questões importantes, como a clara disparidade na presença de mulheres artistas entre as categorias nacional e internacional, com uma participação drasticamente menor das mulheres nesta última.
Sobre a autora
Mariana Leão tem bacharelado e licenciatura em história pela Universidade de São Paulo (USP) e é mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP, com a dissertação: “Maria Leontina, Tarsila do Amaral, Prunella Clough e Germaine Richier: mulheres artistas e prêmios de aquisição na Primeira Bienal de São Paulo”. Atualmente, trabalha com catalogação e gestão de coleções de arte, além de pesquisa em arte moderna e contemporânea.
Este texto faz parte de uma série dedicada ao Arquivo Histórico Wanda Svevo, que completa 70 anos em 2025. Todas as imagens dessa série são ilustradas por fotos guardadas no Arquivo Bienal. Aproveite para conhecer a página do Arquivo e o seu banco de dados, sempre aberto ao público. A iniciativa tem apoio do Promac.