Em uma obra de Leonilson, seu primeiro nome, José, está bordado em um voil transparente esticado em um chassi. O nome é a face frontal do sistema circulatório da linha, visível através da transparência. José flutua sozinho em um retrato vazio. Não há um verbo que mostre alguma ação de José; não há um adjetivo que o qualifique; nem um advérbio que lhe dê uma circunstância ou uma conjunção que ligue José a algo ou a alguém. Não há relações sintáticas, apenas carga semântica. Quem é José? O que “José” revela sobre Leonilson?

José é um texto mínimo, de uma só palavra.¹ Textos mínimos são recorrentes na arte. Eles têm apelo imagético e se adaptam bem a formas plásticas. Se a arte é a expressão estética de imagens, objetos, e espaços físicos e relacionais, textos mínimos facilmente se tornam imagens, objetos ou rasgos linguísticos no espaço físico e relacional.
José é um nome próprio. Para escrever uma autobiografia mínima, Leonilson escolheu o menos definidor, descritivo ou narrativo de seus termos pessoais, ainda que fosse uma das palavras que por mais tempo conviveu com ele. O fato de o artista ter bordado o nome pelo qual não era publicamente conhecido revela desejo de anonimato. Para nomear seu foro mais íntimo, talvez o nome público “Leonilson” falhasse.
Palavras podem falhar. Muitas vezes elas se referem mais a um acordo público de significação do que a uma real correspondência com o que nomeiam. Nomear impõe sistemas semióticos, narrativos e históricos às coisas. A série de cartazes em que Denilson Baniwa enuncia lugares como Terra Indígena mostra a linguagem como um terreno de disputa onde o vencedor tem o poder de nomear. Brasil, Terra Indígena hackeia e inverte o ato que, ao substituir o som “Pindorama”, dos tupis, pelo signo jurídico “Brasil”, dos portugueses, impôs uma língua como parte da máquina colonial de posse, saques, escravizações, genocídios e assassinatos.

Brasil, Terra Indígena é um texto mínimo e conciso cuja ausência de verbo – o Brasil é Terra Indígena – dá ao enunciado a categoria de nome próprio, que deveria estar no Mapa Mundi. Como nome próprio, Brasil, Terra Indígena não argumenta ou narra sobre aquilo que nomeia: mais de quinhentos anos de história ainda a ser escrita pelo ângulo de quem teve a terra e a vida roubadas. Por estar em português, o texto dirige-se ao colonizador que, além de roubar a terra, impôs sua língua e seus nomes aos povos autóctones, inclusive chamando-os pela generalizante ficção “índio”. De uma hora para outra, um novo poder se instala e tudo é renomeado – inclusive você.
Palavras instauram não só narrativas e hierarquias de poder, mas também ficções. Quem já cruzou por terra uma fronteira e viu a palavra Brasil em uma placa no meio de uma paisagem “vazia de Brasil” sentiu a fragilidade do nome e a dimensão fictícia desse texto mínimo – Brasil – no meio de uma imensa paisagem. Placas, sinalizações e comunicações visuais lançam mão de textos mínimos para etiquetar a realidade. Talvez esse seja o mais burocrático papel da linguagem, o de ser um sistema nomeador, controlador, classificador – lembro, aqui, da série Marcados, de Claudia Andujar.
Ao menos no último século, a partir das várias poéticas conceituais e suas viradas linguísticas, a arte passou a se valer de estratégias comunicacionais – como a estética de cartaz e pichação, em Brasil, Terra Indígena – que, através de textos concisos, informam, comunicam, declaram, nomeiam.
Durante a 25ª Bienal de São Paulo, em 2002, um letreiro luminoso de Carmela Gross enunciou como “hotel” o prédio que abrigava a mostra. O prédio da Bienal é um não lugar onde curadoria e obras hospedam-se pelo curto espaço de tempo das exposições que, com caráter internacional, trazem profissionais de muitos lugares, que circulam como turistas na cidade. No intervalo entre uma Bienal e outra, o prédio hospeda eventos de tipos variados. Mas se a palavra “hotel” travava esse diálogo com a função do prédio, ela dialogava também com quem circulava na avenida Pedro Álvares Cabral, de onde o letreiro era facilmente visto.

A maioria das pessoas que passam pela avenida não está ligada ao campo da arte, nunca entrou no prédio da Bienal ou questionou sua função. Ao ler o letreiro, algumas pessoas podem ter pensado que um hotel privado em um parque público não é coisa boa. Outras podem ter constatado o quanto uma topografia de tentativas e fracassos comerciais constantemente redesenha, gentrifica e privatiza o espaço público de São Paulo. Alguém pode ter comemorado o empreendimento e ido à recepção da Bienal procurando por um quarto de casal.
Hotel é um texto mínimo, um substantivo. A palavra foi inscrita – mais que escrita – em um prédio, que fica em um parque rodeado por um complexo viário, que liga várias zonas da cidade. Do emaranhado urbano de elementos verbais, físicos, simbólicos e vivenciais, Hotel emitia significado ao ser um dos pontos da trama de signos gráficos que discursa o espaço público. Diferente do discurso verbal, onde a sintaxe organiza a linearidade e a sucessão temporal dos termos, o espaço urbano organiza seus signos de modo físico, simultâneo e constelar, sob uma lógica muitas vezes caótica, não planejada, que é resultado de disputas.
Lute (1967), de Rubens Gerchman, também tinha a intenção de disputar a rua e se fundir à cacofonia urbana. A ideia era que a escultura em escala humana bloqueasse a avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, embora isso nunca tenha acontecido. Muitas obras de Gerchman, entre os anos 1960 e 1970, objetificaram textos mínimos, como as esculturas-palavras Lute, Ar e Terra (todas de 1967) ou, ainda, as palavras “man” e “woman”, que aparecem como esculturas cênicas em seu filme Triunfo hermético (1972). Na intersecção das experiências neoconcretas, do cinema marginal e de ações performativas entre arte e poesia, conceitos próximos à ideia de texto mínimo, como “palavra ação”, “palavra física”, “palavra cenário”, “palavra objeto”, “palavra movimento”, “palavra caixa” e “verbimagem” circulavam pela arte carioca e pela crítica cultural da época.²

Lido por pessoas que trabalhavam no centro da cidade, o verbo no imperativo, em Lute, talvez fosse associado ao lema “lute pela vida”. Já críticos ao regime político talvez lessem algo como “pegue em armas”, afinal, vivia-se o momento em que a ditadura civil-empresarial-militar recrudescia e a luta armada colocava-se no horizonte. Ambas as leituras – e outras mais – estariam corretas. Sem espaço para construir reflexão, articular argumentos, narrar ou dissertar de forma estendida, textos mínimos muitas vezes não se preocupam em ter significado uníssono pois, ao invés de persuadir e construir um discurso dirigido, convocam e aceitam a contingência das narrativas ou argumentações de quem lê.
Hotel e Lute foram concebidos como rasgo linguístico em intensos pontos viários de São Paulo e Rio de Janeiro. No complexo sistema de circulação – de pessoas, mas também de signos – que liga as duas cidades, poderia ter circulado também o texto mínimo No, de Santiago Sierra. Mas a palavra-escultura de metal viajou em caminhões e navios apenas pelos símbolos de poder do Norte hegemônico – Europa e EUA –, parando em zonas industriais e de mineração, distritos financeiros, refinarias de petróleo, fábricas de armamento militar, museus, feiras de arte e em sedes como as da OTAN, ONU e Parlamento Europeu. A viagem foi documentada em um filme homônimo, atualmente hospedado no YouTube, outra zona de poder.
No – “não”, em inglês e espanhol, idioma natal de Sierra – é um advérbio. Advérbios informam circunstâncias e também modificam o sentido do verbo. No, Global Tour é uma negação em trânsito. É como se a palavra “no” tivesse o poder cinético de se deslocar por um texto, contradizendo a todo momento o trecho que está sendo lido.
A escolha dos lugares que servem de cenário, ou melhor, de frase, para a palavra “no”, gera contradições. A itinerância da obra é uma crítica ao mesmo capital que sustenta o mercado de arte que captura, neutraliza, capitaliza e vende o espetáculo dessa crítica. Se, por princípio científico, um texto teórico não comporta contradição ou ambiguidade, um texto de uma só palavra não tem sequer espaço para gerar contradições discursivas, só contextuais. Mas a inscrição de “no” no espaço público transborda o mundo da arte e suas ambiguidades críticas e enseja a pensar também em outros ecos dessa escrita móvel: o que teria pensado o estivador que viu a palavra “no” sendo içada em um porto? Ao transportar a palavra por horas, o caminhoneiro teria sentido que dirigir era escrever? Pedestres leram um “no” político, insubmisso ou subjetivo? Operários teriam pensando o quanto é difícil e trabalhoso produzir um “no”?
Se cada lugar por onde passou a obra de Sierra era como uma frase que o advérbio “no” modificava conforme suas diferentes leituras, o “no” de No violarás, de Regina José Galindo, não abre espaço para a errância de interpretações: seja uma leitura engajada nas lutas feministas, seja a leitura de um patriarcado que se sente ofendido, o entendimento da frase é o mesmo.
No Brasil, No violarás tornou-se Não estuprarás. Instalada no espaço público, a obra de Galindo forja a dicção bíblica em um fictício décimo primeiro mandamento, negligenciado pela escrita masculina da Bíblia. A noção de propriedade sobre a mulher, naturalizada em “não cobiçarás a mulher do próximo”, é espelhada em Não estuprarás, acentuando a estranheza de existir um verbo de gênero masculino: ninguém imagina uma mulher cometendo esse crime. A obra lembra uma lei silenciosamente descumprida pela conivência patriarcal infiltrada na sociedade, da família às instâncias judiciais. Ainda que, ao menos no Brasil, aconteça com mais frequência no espaço doméstico, o estupro é tematizado pela obra de Galindo no espaço da rua, concorrendo com singelos “não estacione” ou “não vire à direita”, textos mínimos que organizam a vida pública da mesma forma como faz os protocolos éticos, como Não estuprarás.

Não estuprarás é um texto mínimo. Um advérbio de negação e um verbo no futuro. Chama a atenção ver um “não” antes de um verbo no futuro, pois o futuro, enquanto arquétipo utópico, costuma ser positivo. Também é estranho se dar conta de que, nesse texto, o verbo no futuro, além de projetar e antever, lembra. Lembra que a história move-se por violências e dominações que usaram o estupro como arma de guerra, colonização e imposição do suprematismo masculino. Não estuprarás, um texto tão curto, diz muito, inclusive sobre a técnica de colonização através da qual a população de um continente inteiro se formou. Daí a importância de a obra estar no espaço público: ela fala também para as Histórias nacionais.
Quase logotipos verbais, textos mínimos dizem sempre muito além do pouco espaço de manobra verbal que têm. Quando, na Bienal da Bahia de 1966, o futuro governador Antônio Carlos Magalhães retirou Viva Maria (1966), de Waldemar Cordeiro, da exposição, isso aconteceu porque o solitário adjetivo “canalha”, na obra em formato de bandeira, dizia demais. Dois anos antes, o então deputado federal Tancredo Neves havia chamado de “canalha” o presidente do Senado Auro Moura Andrade, que, ao decretar vaga a presidência da República, alegava que o presidente João Goulart havia abandonado o país. Era mentira – hoje, seria uma fake news – e a falsa vacância abria caminho para o golpe de 1964.
Desde 2017, Lívia Aquino promove oficinas para costurar 2720 bandeiras com a inscrição “canalhas”, no plural, mimetizando a obra de Cordeiro. A intenção é cobrir a empena do prédio anexo ao Congresso Nacional. Os ateliês-rodas-de-conversa repetem coletivamente um texto mínimo que descompacta textos e contextos máximos: o diálogo com a história, via Waldemar Cordeiro; as conversas durante as costuras – textos-vividos, mais que textos-escritos; o corte e a costura como escrita física, ritual e coletiva, diferente do exercício abstrato-intelectual da escrita isolada na autoria pessoal. Ao ecoar “canalhas” 2720 vezes, com a temporalidade necessária para cada confecção, Aquino acentua o lado fabril e colaborativo que a escrita enquanto objeto pode ter, no qual manufaturar o signo é o mesmo processo que articula o significado. A repetição do texto mínimo evidencia ainda os padrões repetitivos da história, como os golpes de Estado que um país de democracia frágil, como o Brasil, parece fadado a sofrer. Desde 1964, o adjetivo “canalha” é relembrado como um termo da história brasileira, a ser repetido como frágil contra-golpe verbal.

Termino este texto – nada mínimo – com “A fuga só acontece porque é impossível”, de Pavimento nº1 (2021), de Jota Mombaça. Escritas mínimas também se esticam em sintaxes de maior desenvolvimento duracional, podendo ser chamadas de narrativas mínimas. “A fuga só acontece porque é impossível” esboça uma cena encadeando um artigo, um substantivo, um advérbio, um verbo, uma conjunção, um verbo e um adjetivo que pode ser substantivo. A frase foi pintada no asfalto de uma avenida em Sorocaba, com letras que tinham a largura da pista, em uma escala bem maior que a humana. Para ler, era preciso caminhar, de modo que a leitura demorava o tempo de percorrer o texto a pé. A matéria linguística do texto era bem mais curta que sua matéria física. No meio da frase-caminhada, o ângulo deixava o início ilegível, de modo que ler era também lidar com a paralaxe, memorizar o que foi lido e ir juntando aos poucos o sentido. A leitura-caminhada convocava diversas ações do corpo – como a fuga faria.

Este texto é uma caminhada por várias obras escritas. Na história – e atualmente, como nunca – artistas parecem se valer da palavra tanto para experimentar formalmente materialidades linguísticas quanto para quebrar o silêncio verbal das formas plásticas e, assim, lançar mão de um discurso crítico contundente e direto. Híbridos indefinidos entre slogan, informação, palavra de ordem, aforismo, nome, narrativa e poema, textos mínimos comunicam e afetam instantaneamente, usando a sedução do apelo imagético que têm ao ser discurso verbal e forma plástica ao mesmo tempo. É o caso de “A fuga só acontece porque é impossível”, cuja estética de SOS materializa o texto e funde, em um só ato, leitura, caminhada e resgate aéreo.
¹ Neste texto, uso termos como “escrita mínima” e “texto mínimo” inspirado pelo livro Absence of Clutter, Minimal Writing as Art and Literature, de Paul Stephens. O autor analisa o uso de textos concisos e reduzidos na literatura e na arte conceitual estadunidenses a partir dos anos 1960. No final do livro, Stephens faz uma lista de obras de uma só palavra (A Selected Bibliography of Oneworders), às quais chama de “one-word artworks” (obras de uma palavra) e de “one-word poems” (poemas de uma palavra). STEPHENS, Paul. Absence of Clutter, Minimal Writing as Art and Literature. Cambridge: The MIT Press, 2020.
² Ver Cinemateca, de Luiz Otávio Pimentel, texto publicado em 26/6/1971 na coluna Plug, do jornal Correio da Manhã. Em PIRES, Paulo Roberto (org). Torquato Neto, Torquatália (Geleia Geral). Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
Sobre o autor
Fabio Morais (São Paulo, 1975) é artista plástico, mestre e doutor em artes visuais pela UDESC. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na ECA-USP, sobre escrita em vídeo. Sua mais recente exposição individual foi Gráfico fágico (2024), no Cabinet du Livre d’artiste (Rennes, França). Realizou oito individuais na Galeria Vermelho e participou também de exposições coletivas em instituições como a Bienal de São Paulo e a Bienal do Mercosul (Porto Alegre), MAM-SP, Instituto Tomie Ohtake, entre outras. Possui obras em acervos como os do MAM-SP, Museu da Língua Portuguesa (São Paulo), Museu da Pampulha (Belo Horizonte) e CGAC (Santiago de Compostela) e livros de artista nos acervos da Coleção de Livros de Artista da UFMG (Belo Horizonte), CCSP (São Paulo), biblioteca do MoMA e do Metropolitan Museum of Art (Nova York), Tate Library and Archive (Londres) e Bibliothèque Kandinsky – Centre Pompidou (Paris), entre outros.