Os trabalhos de Bruno Moreschi envolvem a desconstrução de sistemas e a decodificação de procedimentos e práticas sociais nos campos das artes, museus, cultura visual e tecnologia. O artista busca oferecer outras leituras ou ainda explorar as estruturas internas de organizações, para além de seus discursos oficiais, como fez em 2018, com seu projeto para a 33ª Bienal de São Paulo – Afinidades afetivas.
Intitulado Outra 33ª Bienal de São Paulo, o projeto de Moreschi criou análises de imagens da Bienal por inteligências artificiais; faixas do audioguia com comentários de funcionários da mostra; ampliações dos textos da Bienal; filmagens não convencionais da montagem e registros das reações do público.
Outra 33ª Bienal de São Paulo, 2018
Acho que o projeto tinha uma certa discrição que até hoje me fascina. Quando o Gabriel [Pérez-Barreiro, curador da 33ª Bienal] me convidou, eu primeiramente pensei que seria impossível para mim construir algo em diálogo com a potência (autoritária por vezes?) da arquitetura do Niemeyer do Pavilhão. Por isso, eu adorei a saída de que teríamos um website e que o projeto verdadeiramente é o conteúdo criado ali. Também que, tão logo acabasse a Bienal, ele iria fazer parte de algum modo do arquivo da instituição, ou seja, iria ter sobrevivido à arquitetura modernista. Alguns visitantes daquela Bienal se espantaram com o fato de que meu nome aparecia em vários locais da Bienal, mas não havia de fato uma instalação artística relevante no espaço de minha autoria. Achei engraçado e bonito isso.
Audioguia: mais vozes
Há uma ação no projeto da 33ª Bienal que envolveu um grande engajamento com trabalhadores da manutenção da Bienal (faxineiros, montadores, monitores de público etc.) que também trouxe informações muito preciosas sobre o sistema da arte ali colocado em pé. Eu me interesso por esse arquivo de trabalhadores. É informação importante, relevante – e que infelizmente as instituições culturais tendem a negligenciar. Adoraria que mais pessoas soubessem do trabalho do Iraildo Brito, operador de empilhadeira da Bienal – o único motorista de empilhadeira do Brasil que consegue dirigir o veículo nas curvas sinuosas de Oscar Niemeyer que caracterizam o Pavilhão. Este homem é em parte responsável por transportar os trabalhos artísticos mais pesados para os andares superiores do prédio. Foi ele quem transportou os aquários de vacas do Damien Hirst, por exemplo. Por que seu conhecimento não é tratado como legítimo no arquivo da Bienal? Talvez eu me interesse mais sobre o que ele pensa sobre as vacas em formol do que o próprio Hirst. Na verdade, certamente. Ao menos nos quesitos materialidade e espaço em relação a essa obra, Iraildo tem muito mais a dizer do que o artista britânico.
Tecnologia como sistema
A tecnologia que me interessa vem de uma noção bastante expandida desse conceito [de tecnologia]. Para reforçar essa amplitude, eu optaria por pensar na ideia de sistemas. Sistemas que se organizam, muitas vezes de maneira intrincada, para serem capazes de produzirem discursos pré-determinados. Essa construção é complexa, pois precisa revestir o discurso de um efeito de neutralidade suficiente para que ele parecesse uma verdade, o resultado quase que espontâneo vindo de uma determinada instrução já validada anteriormente, pré-sistema. Quanto menos esse efeito de legitimidade for notado, melhor – significa que o sistema está com suas engrenagens em dia. A organização para que isso se dê, seja lá de qual modo for e para qual intuito, é parte dessa tecnologia por que me interesso.
Aprendizado de máquinas
Foi assim, aliás, que eu comecei a investigar o campo do aprendizado de máquinas. Antes, eu já estava interessado no funcionamento de sistemas, como o das artes, e na organização de seus elementos para que a tal “mágica” aconteça. Após o meu projeto realizado na 33ª Bienal de São Paulo, fui convidado para uma residência artística piloto nos laboratórios do então recém-inaugurado Centro de Inteligência Artificial (C4AI) do Centro de Inovação da Universidade de São Paulo (C4AI, Inova USP). Ali, eu criei o Grupo de Arte e Inteligência Artificial (GAIA) com a artista e professora Giselle Beiguelman, algo que me permitiu conviver com engenheiros, programadores, matemáticos etc. Aos poucos fui vendo que o campo de aprendizado de máquinas é também um grande sistema complexo e organizado de tal modo que conseguiu absorver as palavras “inteligência” e “artificial” em seu discurso, sem que esse campo de fato atinja esses elementos.
Imagem como verdade
Acho que estamos em um processo de intensificação de algo que historicamente já vem acontecendo: a imagem servir de mapa, instrução, discurso da verdade. A intensificação disso é tamanha que a visão computacional só conseguiu avançar a partir do uso de milhões de imagens que historicamente foram organizadas em bancos de dados. Essas são imagens de treinamento ou talvez todas as imagens o são. O que pode ser diferente nesse acúmulo de imagens treinadoras? A consciência de que imagens nos orientam. Assim, conscientemente, podemos passar para um segundo capítulo dessa discussão. Se as imagens treinam, o que queremos treinar? Essa é a verdadeira potência do campo do aprendizado de máquinas. Como ensinar uma máquina? Para que fim?
Tecnofilia × tecnofobia
É preciso se equilibrar entre a tecnofilia e a tecnofobia. O equilíbrio aqui não deve ser visto como estar em cima do muro – porque, assim, sabemos que as big techs vão controlar completamente as ações vindas desses alertas. Se esses alertas clamam por mudanças, reside aí algo importante. Não acho que a criação artística seja a princípio utilitária – é até melhor que ela não seja. Mas acredito que nesse caso a arte (em uma noção expandida e que tenha muito mais a ver com trocas, construções criativas coletivas do que obra de arte e museu) pode proporcionar algo prático: a especulação. E, escutando os alertas, vamos precisar dessas especulações para propor coisas, pois o vazio disso nós já sabemos que é a porta para o fascismo. Assim como a arte pautou como são as máquinas hoje (seus designs, modos, efeitos), ela pode oferecer ideias futuras mais radicais. O que vamos colocar no lugar daquilo que estamos criticando? Reside aí uma oportunidade bastante promissora para mudanças estruturais no sistema tecnológico do capitalismo. Nesse momento, estou obsessivamente pensando nisso, pois realizo uma pesquisa que culminará em um longa-metragem sobre isso, no Collegium Helveticum – o Instituto de Estudos Avançados da ETH, da Universidade de Zurique e da Universidade de Artes de Zurique. Estou trabalhando com diversas pessoas em experiências que buscam especular novas formas de organizar e agregar informações em imagens que treinam a IA. Acho que a pesquisa em artes tem muito a oferecer (e a radicalizar) ao campo da visão computacional.