Uma foto de Djanira não me saía da cabeça enquanto preparava meu primeiro livro, a biografia de Jorge Amado. De um jeito meio coquete, meio maroto, seu companheiro, José Shaw da Motta e Silva, a beija no rosto, um casal contente. Tudo indica que Zélia Gattai a fez naqueles dias em que a pintora, amiga da família, produzia o impressionante mural dedicado a uma cena de candomblé instalado na cozinha do apartamento da rua Rodolfo Dantas, no Rio, em fins de 1950.
A cozinha era um lugar habitual para a pintora. Quando ainda vivia apenas como dona de pensão, fazia ela mesma a comida dos hóspedes. Os seus dotes culinários corriam entre os conhecidos, e, embora paulista de Avaré, dominava as receitas baianas. Ora, Djanira tinha ficado viúva muito jovem. E quando conheceu Motta, ele já era Mottinha, chamado assim pelo diminutivo, um baiano cativante. Tais elementos foram o bastante para que, na minha imaginação, eu tenha começado a pensar nela como inspiração para Dona Flor, protagonista do romance que Amado publicou pouco depois. O protótipo de Vadinho, por óbvio, seria aquele segundo marido, o enredo do romance parecia inverter um pouco a ordem, a minha livre associação não se frustraria por tão pouco.
Não há qualquer prova dessas conjecturas, aliás Amado costumava informar outros pontos de partida para esse que é um dos seus romances mais famosos, mas a ligação fantasiosa que estabeleci entre Djanira e Dona Flor me levou a guardá-la numa caixinha diferente na memória. A sua presença, enquanto eu pesquisava sobre o escritor, passou a ser cada vez mais notada por mim, quando ela aparecia em foto ou reportagem, e para atiçar ainda mais minha curiosidade, fora descrita de modo decisivo pelo amigo, com quem compartilhava visões de arte e política: “Djanira é o Brasil”. Amado já me dava notícias de um país; o que mais ela podia me contar?
A decisão de realizar um projeto biográfico passa por muitas etapas e provações. Da primeira ideia até a certeza de que irá seguir no trabalho, é preciso testar o quanto o entusiasmo para tal tipo de dedicação se manterá. Entendi a certa altura que, se tivesse um novo livro no horizonte, conseguiria colocar mais facilmente ponto final naquele já em andamento. Em 2016, dois anos antes de minha biografia sobre Amado ir para a gráfica, acordei certo dia com Djanira em minha cabeça como provável objeto de um segundo livro.
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Naquela manhã fiz o trivial: finalmente escrevi seu nome no Google e me apareceu uma profusão de informações de enorme dramaticidade. Não era mais uma Dona Flor capturada na leveza de um beijo. A sua vida tal como encontrava nos links aparentava situações-limite, além da própria viuvez precoce. Havia uma quase morte por tuberculose, e a salvação pelo desenho, na cama do sanatório. Depois, uma prisão mal explicada durante a ditadura, o cão assassinado, o passaporte recolhido. Na maturidade marcada por uma via crúcis no hospital Silvestre, mantinha a dedicação sempre febril à arte, uma obra que fez sucesso sobretudo entre a década de 1940 e 1960 e tinha sido quase esquecida após sua morte, em 1979. No enterro, a seu pedido, estava sem sapatos, vestida com o hábito de carmelita. Erroneamente, houve quem a identificasse como freira nos últimos anos.
Comprei uma passagem para o Rio, reservei hotel e tinha um primeiro nome para procurar: a gravadora Anna Letycia. Da conversa no seu ateliê, na Urca, saí com nome e telefone de outras três amigas. Cada uma das três me levou a outras três, e já eram nove – ver o efeito pirâmide é sempre um alento quando se está atrás de entrevistas. Mas foi somente no meu encontro com Ceres Feijó, advogada viúva do crítico de arte Flavio de Aquino, que a minha aventura se tornou irreversível. Quando cheguei a sua casa, um apartamento no Leblon onde, além de quadros de Djanira, conservava sua última cama, ela me esperava segurando o testamento da amiga.
– Posso fotografar?
– Leva com você.
Às dezenas de entrevistas com amigos, parentes, críticos de arte, colecionadores e leiloeiros, somava-se uma bibliografia que ia crescendo pouco a pouco, e agora estava ali o testamento. Nele, a pista de que havia um acervo pessoal, e poderia ter sido destinado à Funarte, como pedia. Demorei a entender que estava tudo ali, no Cedoc que fica na rua São José, no centro do Rio. As funcionárias insistiam, de início, na discrição, conforme eu fazia perguntas. A razão é que não consideravam passível de liberação para consulta de pesquisadores mesmo após quarenta anos da morte da artista. Com uma exceção até ali: fora aberto para a equipe que preparava a primeira individual de Djanira no MASP, inaugurada poucos meses depois daquela minha visita, naquele ano de 2019. Consegui liberar também meu acesso, o precedente me ajudava e havia a ambição do que pretendia fazer. No entanto, a pandemia me impediu de continuar a avançar no ano seguinte. Só em 2022 pude voltar, mesmo com prédio lacrado por determinação da Defesa Civil por risco de desabamento. Vai parecer invenção, mas o último documento de seu arquivo que registrei com meu celular era o telegrama de pêsames enviado a Mottinha por Zélia e Jorge.
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Gênero existente desde a antiguidade, com precursores como Diógenes e Plutarco, a escrita de vidas atravessa os séculos com aportes vários, da literatura e da história, das ciências sociais, da psicanálise. Ao tentar esclarecer o que fazia, Plutarco alertou que não pretendia elencar todos os fatos da vida dos césares, e sim capturar sua alma, às vezes demonstrada nos gestos mais triviais, numa anedota. Octavio Paz, em seu ensaio biográfico sobre Sóror Juana Inés de La Cruz – que é na verdade um painel do México colonial –, diz que a ambição do autor de uma biografia é fazer com que o leitor se sinta um velho amigo da pessoa biografada. A cada época, um estilo prevalece, da monumental biografia do século 19 às experimentações modernistas na virada para o 20. Só parece existir uma unanimidade em torno de um projeto biográfico: a cada personagem, uma forma se impõe.
Pela quantidade de material deixado por Jorge Amado, era possível construir uma trajetória que cobria todo o século 20, abarcando não somente sua intimidade como sua dimensão pública. Trata-se de uma pesquisa transoceânica: em arquivos brasileiros e estrangeiros, há cartas, manuscritos, originais de livros, fotos e antigas fitas cassete. Constitui esse vasto acervo um sujeito aberto e em expansão, com amizades distribuídas por todos os continentes, assim como sua obra, em 49 idiomas. Ainda por cima, existem livros de memória, ou quase memória, que ele e sua mulher escreveram, filhos e amigos. O desafio para quem escreve sua vida é navegar nesse excesso de fontes e escolher o fio. Os fios de sua narrativa.
O caso de Djanira parece o oposto. Praticamente não deixou material escrito sobre si. Vislumbramos sua história contada por ela mesma em entrevistas para jornais e revistas. Graças ao que deixou em testamento para a Funarte, as pastas pessoais que foi guardando ainda existem: os recortes da imprensa, contatos fotográficos, cartas, não muitas, trocadas com compradores, às vezes convites para eventos, receituário médico. Não é exatamente escassez, antes é o reflexo de uma vida mais silenciosa – na comparação com a de Amado –, quase sempre numa mesma cidade, o Rio de Janeiro, rodeada de um grupo reduzido. Na comparação com o escritor, a pintora nos leva a uma forma menos narrativa, impõe-se a plasticidade, a atmosfera se distingue pela introspecção e reserva. E que não exista dúvida de seu esforço imenso para preservar a própria memória. Entre tantas pistas disso, ofereço este depoimento: o crítico de arte José Roberto Teixeira Leite me contou que, pouco antes de morrer, Djanira lhe ofereceu seu apartamento-ateliê em Santa Teresa em troca de um livro que escrevesse sobre ela. Empreitada que ele recusou.
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Encontro Djanira a cada quadro que vejo frente a frente. Um pouco como segurar nas mãos os originais de romances de Amado. Com que trabalha o pesquisador, além da visão do que vê e lê? Senti o cheiro do perfume de cravo que o escritor usava. Provei seu prato preferido, arroz de hauçá. Escutava de muitas maneiras o que dizia em áudios e vídeos. De fato, estive com Amado pessoalmente muito antes de iniciar um livro a seu respeito. Quanto a Djanira, a sua voz baixa e pausada está inscrita, para quem quiser ouvi-la, em um longo depoimento no Museu da Imagem do Som, no Rio, na série de depoimentos realizados por aquela instituição no decorrer de décadas com artistas e intelectuais de diversos campos. Visitei Avaré e escutei o Villa-Lobos que ela gostava. Mas em poucos momentos senti tanto a aproximação com ela quanto, numa das visitas que pude fazer em sua casa-ateliê, enquanto registrava imagens de janelas, móveis, santos, quase tudo preservado como deixou, pude segurar o paninho com que limpava os pincéis. Um quadrado de tecido repleto de cores, o fundo escuro, o relevo da sobreposição de tintas. Lembrei do dia em que me avisaram na Fundação Casa de Jorge Amado que havia um objeto para me mostrar: seu marca-passo, retirado obrigatoriamente antes da cremação, me causou uma sensação de assombro e enigma. Aquele paninho de Djanira, tal como o marca-passo de Amado, me fez sentir seu coração bater.
Djanira (1914-1979), de ascendência austríaca e indígena, nasceu em Avaré e viveu grande parte da vida no Rio de Janeiro. Seu sobrenome de família é Job Paiva. Com o primeiro casamento, se torna Gomes Pereira. Viúva, passa a assinar Motta e Silva, após o segundo casamento oficializado. É uma dona de pensão autodidata que passa a chamar a atenção dos críticos com as telas que produz a partir da década de 1940. Inicia, assim, sua trajetória reputada como pintora, desenhista, ilustradora e cenógrafa, com exposições no Brasil e no exterior. Frequentemente viajava pelo país a fim de encontrar pessoas e cenas para seus quadros. Realizou desde cartazes, como o da peça Orfeu da Conceição (1954), a grandes painéis, como o de Santa Bárbara, inaugurado inicialmente no túnel de mesmo nome e hoje no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio. Recentemente sua trajetória e obra têm sido revalorizadas, tendo sido contemplada com uma exposição individual no MASP em 2019 e com obras na Bienal de Veneza em 2024.
Sobre a autora
Joselia Aguiar é jornalista com doutorado em história pela Universidade de São Paulo (SP). Atua como autora, editora, pesquisadora e curadora na área de literatura. Seu primeiro livro, Jorge Amado – uma biografia, publicado pela Todavia, venceu o prêmio Jabuti em 2019 na categoria biografia, documentário e reportagem. Finaliza para a mesma editora um livro em torno da vida e obra da pintora Djanira. Entre trabalhos recentes, foi curadora da Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP em 2017 e 2018 e dirigiu a Biblioteca Mário de Andrade entre 2019 e 2021. Nasceu em Salvador, vive em São Paulo.