Disseram mestiço e nos legitimamos a partir do espólio da colonialidade,
Extrativista, misógino e orgulhoso da pigmentocracia.
Nós nos apropriamos do espaço.
Ficamos com medo na pobreza.
Disseram mestiço e nos montamos na brancura, traçamos e percorremos rotas de consumo, construímos universidades e apelamos para o desenvolvimento. Disseram mestiço e devoramos Anzaldúa, não queremos ser new mestizxs, penetraremos na serpente, revisando o que herdamos, o que adquirimos e o que foi imposto.
Abortaremos nosso crioulo de armário, entraremos em nossas entranhas, onde o mestiço se enraíza e se torna parte de nosso imaginário como sujeito nacional. Hoje, cuspiremos o messtizo para nos colocar de volta no centro. Vamos engolir, engolir sob nossas próprias lógicas violentas, excludentes e fagocitários… e sim, vamos vomitar.
Disseram mestiço e nos colocamos no centro do território, o território-corpo, o território-narrativa, o território-eu.
Nosso tempo está contado.
Isto não é um diálogo, é o fim da ficção política como a conhecemos. Para dizer “nem um negrx, nem um Yanomami a menos”, temos de imaginar nem um MESTIZO A MAIS.
Abraçar as políticas de des-linguagem e, ao mesmo tempo, apostar em uma ética radical de desidentificação do Estado. Inventar formas sensíveis de reconhecer que a pele que percorre todo o nosso corpo é um primeiro arquivo de sensações, memórias, afetos que nos fazem arrepiar, ao mesmo tempo em que nos ajudam a navegar pelas formas improváveis de viver. Abraçar, portanto, as f[r]icções políticas que criamos a partir do coletivo e do grupal, mesmo quando elas precisam ser matizadas, hackeadas ou ressignificadas: a nação, a miscigenação, as fronteiras e também as fronteiras linguísticas, o gênero, a autoridade e todo o delírio capitalista.

Gosto de pensar que Anzaldúa está presente e encontra Geni Núñez, val flores, Silvia Rivera Cusicanqui, Duen Sacchi, Mag de Santo, Karkará Tunga, Castiel Vitorino Brasileiro, Frida Cartas, Daniel Aguilar, Denise Ferreira da Silva, Chuquimamani Condori, María José Gamez, Emperatriz San Patricio, Doña Queta, Mikaela Drullard, Nêgo Bispo e Davi Kopenawa. Gosto de pensar que nossas reflexões nunca são individuais, elas são sempre acompanhadas por polifonias ancestrais. Polifonias que agora estão presentes para liberar o exercício da escrita, para percorrê-lo sem que a ansiedade seja a protagonista. Apesar do fato de que, como disse Anzaldúa, a escrita produz ansiedade, assim como Conceição Evaristo nos diz que as escrivivências da escrita nos dessangram um pouco. Assim, proponho um desdobramento poético de escritas erráticas.
Poéticas da escrita que atravessam as imagens que emergem das antigas narrativas sobre Aztlán, ao mesmo tempo em que rompem de forma lúdica com os esquemas fundamentais dessa configuração mundial. O trabalho sensível, cirúrgico e penetrante de Anzaldúa é, na verdade, uma revolução epistêmica, o transbordamento da imaginação entre as narrativas fundamentais e as sensibilidades decompostas. Uma espécie de fuga coletiva com uma mochila nas costas pelo deserto. O silêncio afogado daqueles que precisam se camuflar do border patrol. A poética da solidão compartilhada.

Minha avó Apolônia – como muitas de nossas avós no México e em outros territórios onde o milho é a base da alimentação – acrescentava cal ao milho para nixtamalizálo; a cal permite que o grão de milho amoleça e solte a casca, ao mesmo tempo que interrompe qualquer processo microbiano. Adicionar cal para facilitar sua transformação e, mesmo assim, tortillas, pozole, gorditas, tamales e atole não deixam de ser milho. Mas também é colocada cal nos cadáveres de animais para evitar sua decomposição, especialmente quando pequenos gambás ou jaritatacas são atropelados pela velocidade do capital no meio da estrada. Minhas avós Nahuas, do sul de Jalisco, e eu, uma ambiguidade mais pintandinha, manchada, mas nunca mestiça.
A mestiçagem como uma ferida profunda, uma ferida produzida pela branquitude colonial e seu esforço de homogeneização, uma ferida que nunca fechará, mas que pode ser tratada; tem que jogar cal na mestiçagem, é preciso colocar cal em Jose Vasconcelos, em sua raça cósmica e em qualquer possibilidade de articular discursos obliterantes/amestizantes e desindigenizadores¹. Devemos permitir que a cal gere uma barreira que, por sua vez, nos permita interagir sem nos deixarmos atravessar pelas lógicas românticas da violência colonial. Pelo contrário, devemos nos permitir escapar de qualquer possibilidade sustentada pelas nomenclaturas que os estados herdeiros do projeto colonial moderno impõem em todas as suas instituições. A consciência mestiça limita a fuga, porque ela representa a emboscada. Uma fuga que envolve não apenas a política da escrita, mas também as políticas do olhar atravessadas por sensibilidades dessignificadas/fissuradas/ideadas fora das linhas retas, onde nem mesmo o onírico tem lugar, porque este último muitas vezes não tem proximidade lógica, articulando assim uma política do invisível. A política do contaminado, do ambíguo (nunca do mestiço), a política da fronteira, do território deslegitimado (nunca de Vasconcelos, nunca do estado), a política de nossas próprias genealogias, genealogias atravessadas por nossas experiências compartilhadas, compartilhadas e entrelaçadas.

O que aconteceria se elaborarmos outra política de identidade que não apele para o território colonizado como a única possibilidade de reafirmação e pertencimento? Como podemos apelar para ideações que rompam com a complacência colonial e, ao mesmo tempo, nos permitirmos libertar dos imaginários violentos que até mesmo impedem a transformação? E o que aconteceria se, em uma tentativa de atravessar tudo, rompêssemos com as possibilidades de captura em torno de todos os imaginários de exploração, utilização e descarte de experiências que acompanham outras formas radicais de pensar nossa ambiguidade colonial? Como fazer de nossa ambiguidade colonial um manifesto do passado, uma tecnologia do futuro e uma balsa para o presente? Como nos convocamos para queimar tudo enquanto, do centro, podemos ver tudo queimar? Que dispositivos podemos criar juntos para além da destruição e de sua contemplação?
A emboscada, como uma tática militar de ataque surpresa, pode nos permitir repensar as maneiras pelas quais temos assumido o trabalho vibrante de Anzaldúa. Precisamos nos permitir não deixar sua proposta passar pela contemplação, mas, sim, nos permitir ser violentamente abalados por sua sutileza leve. A emboscada, assim como a nação, assim como o território, pode e deve ser expropriada dos projetos do Estado moderno que – como menciona a ativista, linguista e pesquisadora Ayuuk Yásnaya Elena Aguilar Gil – sequestraram a noção de Nação, produzindo e sustentando os desejos do próprio Estado. Mas não apenas a nação, também nossa imaginação e nosso desejo; a maneira como sentimos, dizemos, pensamos, sonhamos, etc. Enquanto o Estado existir (seja o México, Brasil, Guatemala, Chile, Colômbia, Bolívia, Argentina, Uruguai, El Salvador, Suriname, Bolívia, Peru, Equador, Panamá, Costa Rica, Honduras, Nicarágua, Cuba, Haiti, Venezuela, Colômbia, etc.) existirão o esquecimento², o apagamento e a captura como formas de governança extrema. A emboscada também seria abandonar toda a possibilidade de articulação sob gramáticas coloniais, permitindo-nos elaborar nossos próprios significantes a partir de nossas entranhas, nossos pulmões, nosso fígado.

Dona Enriqueta, também conhecida como Queta Contreras – parteira, curandeira e herborista da comunidade de San Francisco Tutla, em Oaxaca – me disse que a tristeza ataca os pulmões; a raiva, a ira e a frustração comprometem o fígado e os rins; o medo se concentra igualmente no peito e nos intestinos. Sentimos as imagens com nossos órgãos, pensamos em uma epistemologia das entranhas enquanto apostamos em escritos sem linguagem para o além-do-entendimento. O que Dona Queta nos pede é que prestemos atenção às maneiras pelas quais nossas emoções comprometem nossa organicidade, pensando que nossas emoções e nossos afetos são construções que realizamos em grupos, em comunidades afetivas. Portanto, entender e prestar atenção às nossas emoções é também pensar em outras formas de fazer política entre nós, suturando as feridas produzidas para chegarmos até aqui. Aliviar a raiva não digerida. Nossas entranhas também são nepantleras, fronteiriças. Não transformar o esquecimento e a invisibilização em ferramentas para criar o mundo.
Dona Queta tem 86 anos, sua avó é neta de uma curandeira zapoteca e, desde os 11 anos de idade, acompanha pessoas doentes de medo, tristeza e outras aflições que se agravaram com o passar dos anos. Ela me disse que, se havia uma razão para tantas pessoas terem morrido durante a pandemia de Covid, era porque já havia coisas em vigor desde a organização estrutural do mundo, ou seja, por muitos anos fomos confrontados com medo, frustração, raiva e, acima de tudo, solidão e tristeza. Os pulmões enfraquecem quando estamos tristes, o isolamento, o medo e a tristeza na pandemia enfraqueceram nossos laços, impedindo que nossas mãos, nossos braços, nossos sorrisos e nossos batimentos cardíacos nos mantivessem unidos les unes a les otres.

Nesse sentido, e voltando às provocações acima, as urgências de outras formas de política estão nos sufocando, limitando nossa respiração, suprimindo nossa capacidade de sentir, falar, dizer e sonhar. O sonho também é nepantlero e a imaginação é errática. La chingada está nos carregando, mas la chingada, ao contrário do que Octavio Paz poderia ter dito, não é La Malinche, não é a mãe que chora a perda de seus filhos, não é a mulher que trai, é, de fato, a nação devorada pela lógica crioula dos estados pós-coloniais. La chingada vai te levar e isso só pode acontecer porque todo o poder que o estado concentra em seus aparelhos ideológicos vai te fazer desaparecer.
Venha, vamos sonhar que estamos juntos, vamos convidar o vizinho a sonhar conosco, a nos permitir habitar a escuridão, mesmo quando ela pertence ao regime visual e seu compromisso com a limosidade. Vamos nos comprometer com o sonho, vamos fazer dele um campo para exercitar nossa imaginação, para pensar em atos de autodefesa em um mundo cujas ruínas estão nos aprisionando dia a dia.
¹ Me arrisco a elaborar essa ideia com base nas contribuições do professor Fabian Villegas e da pesquisadora, linguista e intelectual ayuujk Yásnaya Elena Gil Aguilar. Para Villegas, o mestiço (em nossos territórios) é e tem sido, além disso, uma metáfora de sofisticação, desenvolvimento e modernidade que é ativada pela política de branqueamento, como uma construção de cidadania e um modelo de subjetividade, traduzindo-se em formas de organização territorial, políticas culturais, políticas linguísticas, formas de estratificação racial e até mesmo na política de afeto e regimes de desejo (sic); Para Gil Aguilar, outro ativista, a mestiçagem nada mais é do que a desindigenização das populações em prol do apoio ideológico e material do próprio Estado-nação. É por meio dessas duas posições que proponho entender as esquerdas que se estabeleceram em Abya Yala a partir da lógica da mestiçagem.
² “ […] enquanto houver Brasil, haverá esquecimento[…]”, quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude. Castiel Vitorino Brasileiro, 2022.
* As obras que ilustram o texto são uma seleção de danie valencia sepúlveda a partir das coreografias do impossível e suas conexões com os assuntos aqui tratados.
Sobre a autoria
danie valencia sepúlveda (1990, Ayutla, Jalisco, México) é errorista, educadore, tradutore, programadore cultural e pesquisadore independente. Fundou o Círculo Permanente de Estudos Independentes, plataforma de pesquisa contrapedagógica que, entre outros projetos, desenvolve o curso de deformação contínua “Menos Foucault, Mais Shakira”. Atualmente é editore-chefe da revista Terremoto. Desde 2020, coordena o Laboratório La Raza Cósmica, tecnologias de branquitude e arquivos raciais na colonialidade, junto com outros dezesseis artistas e pesquisadores de sua região. Realizou residências de pesquisa e tradução artística em instituições como o Centro de Arte Museo Reina Sofía, em Madri, Espanha, CAPACETE no Rio de Janeiro, Translation House Looren em Hinwill, Suíça, Matéria Abierta no CDMX e Salzburg Summer Academy, coordenada por Cosmin Costinas e Inti Guerrero. Atualmente, coordena o círculo de leitura, pesquisa e estudos sobre o tema “saúde mental: subjetividade, neoliberalismo e sofrimento psíquico” no espaço independente ObreraCentro na Cidade do México.