Para o pesquisador Horacio Fernández, a poesia é a “verdadeira aspiração comum” de toda América Latina. Em seu Fotolivros latino-americanos (2011) ele argumenta que essa vocação poética transparece até em um gênero menor, aquele que hoje definimos como fotolivro – isto é, um livro de fotografia que não é um catálogo ou um compilado de imagens, mas uma publicação pensada para desenvolver uma trama, numa sequência com sentido, por mais diverso que seja, e por mais que não haja uma “história” de fato ali. “Muitos dos grandes escritores latino-americanos tiveram uma relação muito especial com o visual, e concretamente com a fotografia”, Fernández escreve, o que explicaria que haja fotolivros “nos quais palavra e imagem se transformam em parceiras de dança”.
Entre esse subgênero de livros fototextuais, os que contêm versos abundam, sobrepujando a prosa. Tal fenômeno tem uma expressiva – e possivelmente ainda pouco estudada – concentração nestas bandas latinas, inclusive (e sobretudo, eu diria) no Brasil. Parece não ser à toa que ouvimos com certa frequência alguém louvando (não raro tendendo ao clichê) as “qualidades poéticas” de uma fotografia ou de um conjunto de imagens.
As aproximações entre essas duas instâncias artísticas vêm de longa data. O crítico, poeta e curador Adolfo Montejo Navas se dedicou a destrinchar algumas delas em seu ensaio Fotografia e poesia: afinidades eletivas (2014). “Tanto fotografia como poesia são escrituras que se assemelham na aptidão e na recepção”, ele observa, “e ambas só podem ser artes do limite da representação – que arremetem contra a linguagem como limite – sabendo que sua abertura é para aquilo que resiste, que é intratável, que, no fundo, não é representável”. A maneira como fotografia e poesia operam em relação ao tempo, à imagem e à forma é uma dessas afinidades, segundo o autor, e também o modo como fragmentam o mundo, inventam olhares.
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Proponho aqui um breve passeio por fotolivros brasileiros em que poesia e fotografia se encontram. Nosso caminho começa pela cidade, tema candente tanto de poetas como de fotógrafos por todo o século 20.
No Brasil de meados do século passado, metrópoles como São Paulo começavam a causar estranheza e até repugnância, mesmo nos mais otimistas. Guilherme de Almeida, conhecido por seus versos solares, expressa seu incômodo com a capital paulista em Rua (1961). Em seus “poemas-flashes”, as calçadas, por exemplo, tornam-se “serpentes que há nas ruas”, e, se olharmos para cima, lá está o “topo agressivo dos prédios mais altos”. As fotografias borradas e desoladas do fotoclubista Eduardo Ayrosa exibem uma urbe pouco hospitaleira; sequenciadas com inteligência, criam uma tensão que vai aumentando até o final.

A relação conflitante com a cidade ganha tons escatológicos em Paranoia (1963). Numa espécie de premonição dos anos de chumbo que logo se instalariam no país, o então jovem poeta Roberto Piva e o artista e designer Wesley Duke Lee mostram uma São Paulo esmagadora e em convulsão: “Na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida”, diz um verso; perto dali, na praça da República, “pombas crucificadas” são avistadas. Um retrato maldito da cidade que, na forma e nos temas, remete muito à atmosfera beat dos Estados Unidos e à revolução sexual que despontava. Esse escape poético, alucinógeno e sem volta é corroborado pelas fotografias em preto e branco de detalhes e vistas cotidianas da cidade, e também pelo ritmo com que aparecem no livro (tanto o projeto gráfico como as fotos são de Duke Lee).

O escape de uma conjuntura opressiva politicamente pode ser lírico, sentimental, atrelado a um cotidiano possível, ou inclusive ao amor e ao prazer. É o que mostram dois outros livros publicados durante o regime militar. O primeiro deles também se liga a sua cidade de publicação: trata-se de Quarenta clics em Curitiba (1976), do poeta Paulo Leminski e do fotógrafo Jack Pires. “Aproximamos fotos e poemas como ideogramas japoneses”, anota Leminski (que até então tinha apenas um livro publicado) na luva deste volume: “Entre foto e poema – a faísca de uma nova poesia. Nenhum texto foi escrito para uma foto. Foi buscada a relação/contradição texto/foto. Os poemas estavam prontos já. E deu certo”. O envoltório guarda as lâminas soltas e não numeradas que compõem o livro. Em cada uma, um “clic”, formado por uma foto e um poema curto ou haikai. “1º dia de aula/ na sala de aula/ eu e a sala” é o texto que, nessa chave da contradição, acompanha a imagem de um menino em situação de rua agachado na calçada, com o que parece um livro na mão. As fotos de Jack Pires registram cenas belas e trágicas do cotidiano na capital paranaense, no melhor estilo fotojornalístico da época, e, como os versos de Leminski, buscam capturar despretensiosamente o instante.

O outro é O mergulhador (1968), com poemas de Vinicius de Moraes e fotografias de Pedro de Moraes. Projeto de pai e filho, é um livro de amor e de tormento, publicado com elegância de modo artesanal. Pedro selecionou poemas de seu pai, e depois escolheram juntos as fotos que acompanhariam os versos. Abre o livro o longo “O incriado”, poema cheio de inquietações: “Nem plácidas visões restam aos olhos – só o passado surge se a dor surge/ E o passado é como o último morto que é preciso esquecer para ter vida.” Seguem-se poemas amorosos, sobretudo, alguns bastante conhecidos, como os sonetos da “fidelidade”, do “amor maior” e do “amor total”, além de um ou outro poema mais engajado. As imagens fragmentadas – resultado de cortes e ampliações dos negativos – exibem, com poucas exceções, rostos femininos, pedaços de corpos, casais entrelaçados.

Avançando no tempo, é impossível falar dessa mistura de imagens e palavras sem citar Maureen Bisilliat, a britânica mais brasileira que retratou como poucos a complexidade de nosso país. Além de grande fotógrafa, ela é também uma leitora perspicaz e apaixonada, tendo feito diversos livros em que põe suas fotos em diálogo com a obra de grandes escritores nacionais. Em O cão sem plumas (1984), poema fundante de João Cabral de Melo Neto, associa fotografias de um ensaio que fizera para a revista Realidade anos antes, na Paraíba, para uma matéria sobre homens e (principalmente) mulheres que viviam da pesca do caranguejo e passavam o dia na lama do rio. O preto e branco das imagens reforça a ideia da triste simbiose entre as “caranguejeiras” e a lama, e ecoa os versos do pernambucano, que falam de um rio Capibaribe que “Nada sabia da chuva azul,/ da fonte cor-de-rosa,/ […] da brisa na água./ Sabia dos caranguejos/ de lodo e ferrugem./ Sabia da lama/ como de uma mucosa./ Devia saber dos polvos./ Sabia seguramente/ da mulher febril que habita as ostras”. Uma lama que, aliás, de novas e devastadoras maneiras, segue sendo a terrível e concreta metáfora do descaso social e ambiental no Brasil.

Em uma toada mais contemporânea, podemos citar ET eu tu (2003), no qual o poeta, letrista e músico Arnaldo Antunes responde com seus poemas a fotografias e fotomontagens enviadas a ele pela artista mineira Marcia Xavier. O livro nasceu dessa correspondência que durou quase três anos, e nele a poesia também é visual, quase concretista, dialogando explicitamente com as imagens na diagramação – por vezes os versos se espalham sobre as fotografias, e em outros momentos sua disposição imita alguma forma presente nelas (Arnaldo e Marcia assinam o projeto gráfico junto ao artista Carlito Carvalhosa). Assim, por exemplo, ao lado de uma fotografia que mostra os pés descalços e as canelas de uma mulher (os joelhos estão perto da margem da página, já fora de foco, e o conjunto está recortado sobre um fundo preto), há um poema “vertical” que diz: “um/ ou dois/ ou dez/ pontos de apoio/ boiam onde/ pousam/ pisam/ pesam/ pra suster/ o resto/ de si/ mais/ acima”.

Em todos esses fotolivros vemos a potência que há nessa união entre fotografia e poesia – seja quando foram criadas em conjunto ou adicionadas posteriormente, pensadas a partir de uma troca de cartas ou da revisitação de obras queridas. Certa vez, o grande Robert Frank disse algo que seria muito reproduzido, e que Montejo Navas usa inclusive como epígrafe de seu livro, mas que nem por isso deixa de ser preciso e, por que não, poético: “Quando as pessoas virem minhas fotografias, quero que se sintam como quando desejam ler pela segunda vez o verso de um poema”.
Sobre o autor
Miguel Del Castillo é escritor, tradutor, editor e curador. Carioca radicado em São Paulo desde 2010, é autor do livro de contos Restinga (2015) e do romance Cancún (2019, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura), ambos publicados pela Companhia das Letras. Foi escolhido um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros pela revista britânica Granta, em 2012. Atua como coordenador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles e foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM, além de ter mantido uma coluna mensal sobre fotolivros no site da livraria Megafauna. É mestrando no departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.
As fotografias aqui reproduzidas fazem parte da Base de Dados de Livros de Fotografia. A BDLF é um site de referências bibliográficas de acesso livre, atuando como base de dados referencial, biblioteca digital e espaço de reflexão crítica. Trata-se de um projeto de divulgação cultural e de natureza informativa, sem qualquer finalidade econômica. Visite: livrosdefotografia.org/